TODA A VIDA FUI PASTOR,
TODA A VIDA GUARDEI GADO
(Ensaio etnográfico sobre o borrego)
J. M . Monarca
Pinheiro
(Confraria da Moenga)
J. M. Monarca Pinheiro
TODA A VIDA FUI PASTOR,
TODA A VIDA GUARDEI GADO
Não
há gado como a ovelha, para o lavrador. Ella dá-lhe o leite, dá-lhe a carne,
dá-lhe a lã, dá-lhe a pelle, e até urina e esterca – com sua licença – para o
dono.
Brito Camacho, Gente Rústica
Sete
anos de pastor Jacob servia...
A pastorícia é uma antiquíssima actividade humana.
As culturas hebraica, grega, romana, cristã e árabe integraram nos seus
escritos sagrados e profanos muitas referências ao pastoreio de gado,
particularmente de ovelhas, bem como aludem a tarefas directa ou indirectamente
a ele ligadas, como o aproveitamento do leite, da carne, da lã e da pele.
Os Hebreus foram um povo nómada, povo de pastores
que praticava a transumância com rebanhos de milhares de cabeças. Diversos
episódios biblícos nos dão notícia da pastorícia, bem como do uso de ovelhas e
cordeiros para fins sacrificiais, numa terra, Canaã, que é considerada, terra
de que mana o leite e o mel.
Recordemos alguns desses episódios.
No Génesis diz-se: Abraão era muito rico
em rebanhos (...). Lot que acompanhava Abraão, possuía, igualmente, ovelhas
(...). Houve questões entre os pastores dos rebanhos de Abraão e os pastores
dos rebanhos de Lot (Génesis, 13).
Também no Génesis se relata, no sacrifício de
Isaac: Erguendo Abraão os olhos, viu, então, atrás dele um carneiro preso
pelos chifres a um silvado. Foi buscá-lo e ofereceu-o em holocausto, em
substituição do filho (Génesis, 22).
Ainda no Génesis, o episódio do encontro de Jacob
com Raquel, retrata um mundo de pastores: Jacob perguntou aos pastores: De
onde sois meus irmãos? Responderam: Somos de Harran. Ele disse-lhes: Conheceis
Labão, filho de Nahor?. Responderam: Conhecemos. Disse-lhes ele: E está de boa
saúde? Responderam: Está de boa saúde, e ali vem Raquel, sua filha, com o
rebanho. Ele disse: Ainda é dia claro, é cedo para recolher os rebanhos; dai de
beber às ovelhas e voltai com elas a pastar. Responderam: Não podemos, enquanto
todos os rebanhos não estiverem reunidos. Então, afasta-se a pedra da boca do
poço, e damos de beber ao gado (Génesis, 29).
No livro do Êxodo diz-se: Moisés, porém,
conseguiu fugir do Faraó, refugiando-se na terra de Madian. E quando lá chegou,
sentou-se junto a um poço. As sete filhas do sacerdote de Madian foram tirar
água e encheram os tanques para dar de beber ao gado do pai. Mas tendo chegado
alguns pastores, obrigaram-nas a sair dali. Então, Moisés ergueu-se, tomou a
defesa delas e deu de beber ao gado que lhes pertencia. (...) Moisés
apascentava o gado de Jetro, seu sogro, sacerdote de Madian. Um dia, conduzindo
o rebanho para além do deserto, chegou ao monte de Deus: o Horeb. O Anjo do
Senhor apareceu-lhe numa labareda, no meio duma sarça (Êxodo, 3) .
A instituição da Páscoa é outro episódio bíblico
referencial: No décimo dia deste mês, tome cada um de vós um cordeiro por
família, um cordeiro por cada casa. Se a família for pouco numerosa para comer
um cordeiro, comê-lo-ão em comum com o seu vizinho mais próximo (...). Será um
cordeiro sem defeitos, macho e com um ano de idade; podereis escolher um
cordeiro ou um cabrito (Êxodo, 12).
No Primeiro Livro de Samuel, várias
passagens se referem a David como pastor. O profeta Samuel procura David para o
ungir em nome do Senhor: Estão aqui todos os teus filhos? Isaí respondeu:
Resta ainda o mais novo que está apascentando as ovelhas. (...) Saul mandou
mensageiros a Isaí, dizendo: Manda-me o teu filho David, o pastor. Perante
a necessidade de enfrentar o filisteu Golias, Saúl, Rei de Israel, não
confiando em David, diz-lhe: Combatê-lo, tu? Não é possível.(...) David
respondeu: Quando o teu servo apascentava as ovelhas do seu pai e vinha um leão
ou um urso roubar uma ovelha do rebanho perseguia-o e matava-o, tirando-lhe a
ovelha da boca (Primeiro Livro de Samuel, 16, 17).
No Cântico dos Cânticos, na bela poesia “O Esposo”,
este, referindo-se à esposa, diz: (...) Os teus cabelos são como um rebanho
de cabras descendo pelas vertentes das montanhas de Galaad. Os teus dentes são
como um rebanho de ovelhas tosquiadas, que sobem do lavadouro; cada um leva
dois cordeirinhos gémeos, e nenhuma há estéril entre elas (Cântico IV, 4).
Entre os gregos do Séc.IX a.C. (...) A função
económica dos pastores de Homero consistia antes de tudo em abastecer de carne
fresca as gentes da cidade e da planície. Não era porém a única, e não devemos
esquecer o fabrico de queijos, sobretudo dos queijos de leite de cabra e
ovelha. Tanto mais que a Odisseia nos legou uma descrição bastante detalhada de
uma dessas queijarias, a de Polifemo. Está instalada na gruta do Ciclope.
Quando Ulisses e os seus companheiros penetram na caverna, fazem de relance o
inventário do material: tabuleiros carregados de queijos que acabam de
fermentar e endurecer, vasos cheios de leite desnatado, cestos para pôr a
correr o leite coalhado, jarras, baldes de madeira para mungir os animais.
Os métodos da indústria queijeira homérica são
bastante conhecidos. Os rebanhos partem de manhãzinha para as pastagens depois
das crias terem mamado. Estas ficam no estábulo para não mamarem nas mães
durante o dia. Ao anoitecer os rebanhos voltam. As mães com as tetas inchadas
chamam ruidosamente pelos filhos; estes, do estábulo, respondem: é uma bela
barulheira (Odisseia, IV, 433, 435). As mães são então mungidas antes de
entrarem no estábulo, mas, bem entendido, não completamente. Põe-se de parte
uma pequena provisão de leite para beber às comidas. O resto é para fabricar
queijo. Põe-se imediatamente o leite a coalhar; a operação efectua-se
rapidamente. Põe-se o leite coalhado em pequenos cestos de junco para o fazer
escorrer. Depois são batidos e espremidos. Por fim os queijos são dispostos
sobre tabuleiros num sítio coberto, onde acabam de fermentar e secar (Émille Mireaux, A Vida Quotidiana no Tempo de
Homero).
Entre os romanos Os proprietários entregavam-se
também à criação de gado, e era sem dúvida a dos ovinos que predominava. No
momento do tremor de terra de 62 (Pompeia) morreram seiscentas ovelhas.
Columela aconselhava a criar gado para se obter estrume, conselho que os
proprietários de vinhas decerto seguiriam, dadas as necessidades de adubação
nessa cultura. Em certas villae os rebanhos eram agrupados num curral e
guardados por cães (Robert Étienne, A Vida Quotidiana em Pompeia).
O Evangelho de São Lucas refere a parábola
da ovelha perdida: Qual é o homem dentre vós, que, possuindo cem
ovelhas e tendo perdido uma delas, não deixa as noventa e nove no deserto e vai
à procura da que se havia perdido, até a encontrar? Ao encontrá-la pôe-na
alegremente aos ombros e, ao chegar a casa, convoca os amigos e vizinhos e
diz-lhes: Alegrai-vos comigo, porque achei a minha ovelha perdida (...) –
(São Lucas, 15).
No Evangelho de São João é significativa a
parábola d’O bom pastor: Em verdade, em verdade vos digo que aquele
que não entra pela porta no curral das ovelhas, mas sobe por outra parte, é
ladrão e salteador. Aquele que entra pela porta, é o pastor das ovelhas. A este
o porteiro abre e as ovelhas ouvem a sua voz; e chama pelo nome as suas
ovelhas, e leva-as para fora. E depois de fazer sair todas as ovelhas, vai
diante delas e as ovelhas seguem-no, porque conhecem a sua voz. Mas não
seguirão um estranho, antes fugirão dele, porque não conhecem a voz dos
estranhos. (...) Eu sou o Bom Pastor: O bom pastor dá a vida pelas suas
ovelhas. Mas o mercenário, que não é pastor, de quem não são as ovelhas, vê vir
o lobo, deixa as ovelhas e foge, enquanto o lobo as arrebata e dispersa, porque
é mercenário e não se importa das ovelhas. Eu sou o Bom Pastor e as Minhas
Ovelhas conhecem-me (Evangelho de São João, 10).
É preciso não esquecer que Jesus foi adorado, na
gruta de Belém, por pastores que lhe ofereceram os frutos dos seus rebanhos.
Curiosa é a tese que Francisco Dias da Costa
apresenta, das ovelhas, enquanto espécie, serem originárias da Região dos
Barros, raia portuguesa entre Serpa e Campo Maior e Extremadura espanhola
(Solana de los Barros, Salvatierra de los Barros, Villafranca de los Barros,
Calzadilla de los Barros) e de o nome Guadiana, significar “rio das
ovelhas”: Rica de pastos, nela, segundo alguns autores, teriam aparecido
sobre a terra as primeiras ovelhas. Animais de grande interesse económico,
dadas as suas modestas necessidades alimentares e alto rendimento (em leite, em
lã e em carne), a sua docilidade é proverbial. Daqui irradiaram, já melhoradas,
espalhando-se por todo o mundo (...).E da origem das ovelhas nestas terras
teria o rio recebido o nome de Guadiana. Teria sido chamado pelos Fenícios,
Anas (rio Anas), significando esta palavra, em fenício, ovelha ou ovelhas.
Seria, pois, o rio das Ovelhas. O nome teria sido adoptado pelos Romanos e
pelos Berberes. Estes, no entanto, antepuseram ao nome Anas, a palavra que no
seu vocabulário significa rio, Ued ou Uadi (ou Guadi), fixando-se assim o nome
Guadiana (Francisco Dias da Costa, Maravilhoso Guadiana).
Para António Borges Coelho (...) o borrego
ainda hoje assinala os limites geográficos da passagem mais duradoura da
civilização árabe entre nós (António Borges Coelho, Portugal na Espanha
Árabe).
No Século XVI português, dos vários autores que
escreveram sobre o tema dos pastores e das ovelhas, dois são aqueles que
criaram belos textos poéticos: Dizem que havia um pastor/Entre Tejo e
Odiana,/Que era perdido de amor/Por uma moça Joana./Joana patas guardava/Pela
Ribeira do Tejo;/Seu pai acerca morava,/E o pastor de Alentejo/Era e Jano se
chamava.//Quando as fomes grandes foram,/Que Alentejo foi perdido,/Da aldeia
que chamam o Torrão,/Foi este pastor fugido./Levava um pouco de gado/Que lhe
ficou de outro muito/Que lhe morreu de cansado: Que Alentejo era enxuto/De água
e mui seco de prado (Bernardim Ribeiro, Éclogas).
Verdes são os campos/de cor de limão/assim são os
olhos/do meu coração.//Campo que te estendes/com verdura bela/ovelhas que
nela/vosso pasto tendes;/D’ervas vos mantendes/que traz o verão,/e eu das
lembranças/do meu coração.//Gado que pasceis,/com contentamento,/vosso
mantimento/não no entendeis:/isso que comeis/não são ervas, não:/são graças dos
olhos/do meu coração (Luís de
Camões, Obras de Luís de Camões).
Rodrigues Lobo, nas Éclogas, também
escreveu sobre o tema: Esta é a antiguidade, e nobreza da arte dos pastores,
a que tirou o preço a cobiça dos homens; a esta, como mais douta, pertence o
conhecimento do pastos, a natureza das terras, a virtude das ervas, as mudanças
do tempo, o movimento dos céus, os efeitos do sol, a qualidade dos animais. Esta
vida, como mais quieta, tem em seu trabalho todas as cousas com que pode
sustentar-se: a lã, as peles, a carne dos animais, as ervas, legumes, o fruto
das plantas. Tratam com a terra e com as ovelhas que nunca recusam o senhorio
dos homens, antes com uma humilde sujeição entregam seus frutos agradecidas a
todo o trabalho. E qual mais agradecido que o de um pastor? E que maior engano,
que o de quem desconhece esta verdade? Que estilo mais conforme ao uso da
razão, e menos inficionado da malícia que a singela prática dos pastores?
(Rodrigues Lobo, Éclogas).
E o
Pastor de Alentejo Era...
Na literatura de inspiração etnográfica
encontram-se textos admiráveis que retratam com rigor o mundo dos pastores e
rebanhos de ovelhas. Vejamos o texto Ganadeiros, de J. A. Capela e
Silva: D’essa prestimosa classe de ganhões, destacam-se pelos seus hábitos
singulares, os pastores. Ao acomodarem-se, raro é o que não trata a condição de
poder trazer ao rebanho, determinado número de cabeças, ou seja o seu puvilhal.
Esta regalia fixa-o definitivamente ao rebanho.
Pastor com puvilhal é homem que desaparece das
aldeias, para viver na malhada junto ao bardo do rebanho. Só de longe em longe
abandona a obrigação. Depois da família, é o puvilhal que lhe absorve todas as
atenções.(...) Períodos há em que os pastos escasseiam, e então os ganadeiros
agitam-se à porfia, junto do lavrador, cada um a fazer valer aquilo que julgam
de seu direito, exigindo pastagens para os seus rebanhos.
Os pastores em plano secundário empregam todas as
habilidades para não ficarem atrás, mas por via de regra são vencidos pelos
privilégios dos outros ganadeiros, quando os há. Surgem então períodos de mal
estar entre eles, a ponto de alguns deixarem as lavouras para não perderem o
seu remédio (...).
O rebanho ou a manada é tudo para o ganadeiro.
Aqueles sons das mangas a martelar notas de música grave, a harmonia dos
chocalhos machos e da samserras das manadas; o trinar agudo, estouvado das
esquilas e sinetas das cabradas, a toada alegre dos rebanhos, é para o
ganadeiro a melhor manifestação de grandeza do mundo em que vive. Todos os
ganadeiros têm a paixão dos chocalhos. A loiça para eles é a coroação da sua
arte, exprimindo a toda a hora a subjectividade do ganadeiro. É ele que
estabelece a harmonia das chocalhadas, espécie de partitura que dignifica o
autor.
(...) O ganadeiro passa a vida a curtir e a
surrar peles de gado morrediço para fazer coleiras, que cose com tiras
estreitas de pele de cão ou de gato – para um correol não há aí como pele de
gato – e é raro encontrá-los sem que tragam enfiada no braço esquerdo, uma
coleira enchocalhada, ou a fazer cáguedas, ou um badalo de pau de ferro, ou de
cepa de piorno.
(...) As chocalhadas e a paisagem de fundo a perder de vista,
máscula, viril, sem verde piegas, completa o quadro. E o ganadeiro naquele
mundo, com o seu puvilhal e a sua choça, independência sonhada, desde os tempos
de ajuda, sente-se o mais feliz dos homens.
Quando as ovelhas estão afilhadas, depois de uma
outonada que deu fartura, que cobriu de manto verde as restolhices e pousios,
aí pela altura dos Santos, quando o sol desperta no nascente, em manhã serena,
no fundo arroxeado que tarda, o horizonte, e o pastor de gravato em punho, de
samarra e safões no alto do bardo, levanta a cancela tecida de giesta, e se
abre em canal escuro, largo, vertiginoso, a correr como água de lago que
tivessem destapado, e se espraia ao longe num berreiro onde há todas as notas
de música; o toar da loiça em aleluia, os borregos negros de azeviche, ou
brancos de neve, aveludados, de joelhos no chão, rabo a dar a dar, afocinhando
sofregamente os uberes retesados das mães, ora quietas, ora a amimá-los em
requebros de amor maternal, levanta-se mais ainda a planície imensa e
reflectem-se no quadro grandioso os encantos da vida do ganadeiro.
O sol sobe imponente, dissipa as pérolas de
orvalho das moitas e restolhos, e o gado espalha-se, alarga à vontade,
alegremente, vai aonde quer que o campo é vasto, e as lindas não se alcançam
num dia. E o pastor lá vai arrastado pelo rebanho de rafeiro ao lado, sempre a
olhar o dono, esperando ordem de um arrodeio.
Depois da borregada, de barriga cheia, como
crianças despreocupadas e ladinas, correm e cabriolam ao longo dos caminhos, em
magotes cerrados, até que o balar das mais inquietas, por vezes já longe, lhes
gritem que vão, não lhes aconteça algum mal.
E os borreguitos de rabos ao vento, partem
velozes, como meninos obedientes direitos às mães que, de cabeça erguida,
berram de boca cheia, num misto de carinho e de necessidade corporal, que a
outonada foi boa...
No verão quando o sol dardeja fogo, e o gado
começa a moscar, ei-lo que parte encarreirado, a caminho do acarro numa nuvem
de pó. Então, à sombra do montado, ouve-se o badalar suave da chocalhada,
acompanhando o ritmo do corpo arquejante, a decrescer, a decrescer... até se
extinguir com a última cabeça que se deitou.
Fica depois o cantar das cegarregas, e o susurrar
da aragem tépida acariciando a folhagem do arvoredo, e o respirar violento
daqueles centos de animais como o soprar de monstruoso fole.
O pastor sentado, deleita-se a olhar o gado, e a
sua imaginação alheada do mundo que o rodeia, divaga em sonhos de esperança, em
fantasias pueris, pensa nos pastos, e nas feiras, e na lã, a olhar o puvilhal
que salpica o rebanho, a orgulhar-se de o possuir...
(...) E o pastor como quem despertasse de sono
profundo, volta a olhar o gado, já todo no chão, de pescoço estendido e
arquejante...
Depois estende o alforge, admira as obras que trás
entre mãos, concentra-se na sua arte, e como que a cantar essas cantigas
alentejanas repassadas de sentimento, para ali fica a ramear o buxo ou a
cortiça, poeta inspirado na planície a escrever seus versos.
O ganadeiro é para a planície o que a terra ou os
montados ou a gadeza, são para o sol ardente. Dominado pela terra vive para
ela. A solidão impressionante que o rodeia, entrecortada com o respirar do
acarro é como sombra misteriosa de catedral a inspirar-lhe vagos sentimentos de
poder divino. E o ganadeiro que raramente ouve o cantar das ganharias, sente-se
na solidão de templo majestoso onde o culto é recatado e sublime.
As pastagens exuberantes que ele vê nascer e
florir, o aroma do montado em pendão, a vida bonançosa do rebanho, fizeram-no
artista.
Assim despertou também o génio maravilhoso de Sansovino,
mas o mundo onde a águia ensaiou os primeiros voos, mais generoso, não o
prendeu: levou-o para a glória que o havia de imortalizar. Os ignorados
ganadeiros alentejanos, esses, envoltos sempre em torvo materialismo, vivem
confundidos com a gadeza manadia, escravizados uma vida inteira ao rebanho,
alheados do mundo, vivendo só para o lar, e alguns, os mais desgraçados, um
pouco para a sua arte.
Os pastores alentejanos são homens simples, quase
crianças, com traços indeléveis do rigor do tempo, e do ambiente, só sabendo
falar daquilo que se relacione com a sua profissão. A Arte de pastor é ainda
hoje transmitida de pais para filhos, começando em tenra idade por ajudas, e só
na maioridade alcançam a categoria de entregues ou pastores.
Os que se distinguem na profissão chegam a
acomodar-se nas grandes lavouras como maiorais com puvilhal avultado, mas sem
rebanho, com a missão de superintender nos rebanhos de gado lanígero.
Ficou célebre o Joaquim Patorra, de Barbacena,
terra afamada de ganadeiros, maioral de ovelhas da casa de Ruy d’Andrade,, de
Font’Alva. (...) Nas apartações a tirar uma ponta de gado de escolha, ou de
refugo, a apontar borregos, ou derrabar ovelhas para casta; nas tosquias a
enrolar velos ou a assinar badanas; nas feiras a atender compradores, fazia
embasbacar os que o rodeavam.
Os tarros e tarrêtas que saíam das suas mãos
tinham fama: pareciam de uma peça só. Bem lançados e sem arrebiques de compra
que, dizia, lhes tiravam o merecimento.
Ufanava-se de ter iniciado na arte de ramear
buxo muitos ganadeiros.
“Esta queda nasce já com a criatura... tirante
algum que sofre de mal, e que puxou p’ra vida de ganadeiro por não poder andar
nos ganhões... esta aquela de uma pessoa andar atrás do gado... sem fazer
nada... hoje e amanhã..., hoje e amanhã... não podia ser...A gente logo em novo
pende para fazer um barbilho... e em se sentando puxa logo da navalha e pega a
cortar... depois vê o camarada a fazer coisas... e aqui tem... tem que ser...
como é que um homem havia de passar o tempo? Agora nem todos têm o mesmo
sentido... mas eu ensinava a todos o que sentia...”
Eram assim os pastores há umas duas dúzias de
anos. Consideravam-se acima de ganhões e mesmo dos mestres de obra grossa. Bons
tempos esses em que qualquer ganadeiro enchia as ruas da aldeia quando ia à
roupa ou passava para as feiras.
Era vê-los de gravato ao ombro, burra arreada com
correama de pele curtida com pedra de ume, atafais largos de fivela de compra,
alforges rameados; pele de cão de pernas pendentes; cabeçada de testeira larga
com arrebiques, misturados com os amuletos de latão brilhante, a meia lua e o
signo-saimão...
Viveram felizes. A paz de então, a paz de há vinte
e tantos anos, que se evolava dos montes e da planície, formou-se assim. O
convívio com o rabanho durante uma vida inteira! A vida social de um grande
rebanho, numa imensa herdade, em muitas herdades! As doces e ternas ovelhinhas,
de meigo olhar, disputando na luta pela vida uma solada de boleta ou um cômoro
de verdura! Quem sabe se a paz de então nascia nestas fontes de verdade? (J. A. Capela e Silva, Ganharias).
Os trabalhos do rebanho são também descritos no
estudo Aspectos Antropogeográficos do Alentejo, de Mário Nunes Vacas,
descrição que é complementar: Gado ovino – O gado ovino, sobretudo, passa a
maior parte dos dias de calor no calmeiro, acarrado. O pastor leva então dias e
dias de boa vida. Solta o rebanho do bardo, de madrugada, com estrelas, por ser
aquela hora que os animais se tratam na pastagem. Cedo ainda, a erva está
branda, mais macia, o gado pega-lhe melhor e não encalma. Logo, porém, que
começa a aquecer, seguem as reses para o calmeiro, e aí ficam agarradas a maior
parte do dia, até que de novo começa a refrescar. Então volta de novo para a
pastagem, e só muito depois de sol posto, quase sempre já com estrelas, entram
nos bardos, quando não ficam a prado, dormindo mesmo na pastagem.
O gado ovino anda, regra geral, repartido por três
rebanhos. O rebanho dos carneiros, que só numa pequena parte do ano se juntam
com as ovelhas para cobrição, o rebanho das ovelhas que criaram, ou alavão, e o
rebanho das que não tiveram crias, ou alfeiras. As ovelhas do alavão vão
amamentando as crias até à altura em que se faz a apartação e começa a ordenha.
A apartação consiste na separação dos borregos das mães, para que se possa
aproveitar todo o leite destas. Feita a apartação, os borregos ficam em rebanho
à parte até serem vendidos e começa-se a ordenha. Antes, porém, desta começar,
todo o rebanho é derrabado a fim de tornar mais fácil e mais rápido esse trabalho
ao pastor. Este é obrigado à ordenha de todo o rebanho, sempre que o número de
cabeças não seja superior a 350. Quando, porém, este número é excedido, serão
então já dois que nela participam. Para serem ordenhadas, são as ovelhas
metidas em apriscos, compridos currais em forma de corredor estreito, feitos
com rede de alfirme suportada por estacas de madeira. A entrada é um pouco mais
larga abrindo em semi-círculo, para tornar mais fácil o acesso do rebanho ao
aprisco.
Uma vez no aprisco, começa o pastor a ordenhar
para dentro do ferrado, vasilha apropriada para receber o leite, o qual, uma
vez cheio, é despejado para o cântaro de lata. À medida que vai fazendo a
ordenha, o pastor deixa para trás as ovelhas já ordenhadas, e assim percorre
todo o aprisco. O feitio deste tem mesmo por finalidade permitir ao pastor ordenhar todo o rebanho sem
grande dificuldade, e sem que seja possível passarem-se-lhe ovelhas para trás,
senão depois de já terem sido ordenhadas. Uma vez nos cântaros, é o leite
transportado para o monte ou até ao comprador, caso tenha sido vendido.
Impróprio para o consumo directo, é todo ele empregado no fabrico de queijo.
Quando o tempo começa a aquecer e o calor começa a
ser mal suportado, carregada com a lã que durante um ano inteiro foi crescendo
e agora, já comprida, a sufoca e encalma, procede-se à tosquia. Arma-se então
um bardo em sítio apropriado, traz-se o rebanho, e os tosquiadores começam
aquele serviço já há muito apetecido pelas ovelhas. Munidos de suas tesouras e
apernadas as ovelhas, lá as vão desnudando, aliviando-as dos seus pesados
velos, agora já mal suportados. Em dois ou três dias a tosquia fica pronta, as
ovelhas, mais leves e satisfeitas, parecem outras já, e a lã, formando velos, é
ensacada. É este mais um dos variados produtos que a ovelha fornece ao seu
dono, e não o de menor valor. Em anos de bom preço, é ele até um dos mais
valiosos.
Além de tudo isto, é ainda o estrume da ovelha
aproveitado como adubo nas terras destinadas à sementeira. O bardo onde o
rebanho recolhe todas as noites é para isso armado no alqueive, terreno
destinado à seara do ano seguinte; e, porque todos os dias é mudado, vai-se
adubando a folha naturalmente (Mário
Nunes Vacas, Aspectos Antropogeográficos do Alentejo).
Os
Trabalhos e os Dias
A tosquia tem um sabor especial descrita na prosa
escorreita de Brito Camacho: Mal vinha próxima a época da tosquia, aí por
fins de Abril, entrava eu num desassossego enorme, aflito por saber o dia certo
em que chegariam os tosquiadores. Meu pai não mo dizia, o compadre João
Catarino quase nunca mo podia dizer senão de véspera, porque o não sabia mais
cedo.
Era um espectáculo que me entretinha muito, e
sobre todos os outros em que o gado entrava, tinha a vantagem de durar uns
poucos de dias, mais ou menos conforme o número de tosquiadores, porque lá
quanto ao número de cabeças ele pouco variava de ano para ano.
Na véspera, ao cair da tarde, fazia-se o tendal,
com braçados de lenha, servindo de porta, em geral, umas gangalhas velhas,
deitadas. O chão era muito bem varrido, depois de regado, para que a lã fosse,
o menos possível, suja de terra.
No dia seguinte, muito cedo, mas já com o sol
fora, vinha todo o rebanho ao monte, só ficando no tendal as cabeças que
poderiam ser tosquiadas até à noite, fazendo-se o cálculo sobre a base de vinte
cabeças por homem.
Os tempos, hoje, são muito diferentes: os homens
ganham muito mais e trabalham menos, e por muito pouco que trabalhem ainda
reputam exíguo o seu salário. Um tosquiador, naquele tempo, ganhava o máximo de
dezassete vinténs, a seco; hoje ganha, também a seco, entre dez e quinze mil
réis. Com esta circunstância agravante – naquele tempo um homem tosquiava, como
já disse, o mínimo de vinte ovelhas, hoje tosquia, em média, uma dúzia, pois
que em certos dias nem à dúzia chega.
(...) à hora de começar a faina, estavam
empioladas tantas cabeças quantos os tosquiadores, e neste serviço colaborava
eu, agarrando as ovelhas pelas pernas, e agarrando os carneiros pelos cornos.
Era trambolhão de meia-noite, principalmente quando o compadre João Catarino,
segurando um carneiro, me punha em jeito de lhe pegar de cara ou de cernelha,
largando o bicho quando eu lhe dizia, pesporrente como um valente moço de
forcado – agora, compadre João!
Está bem de ver, sucediam estas coisas quando
meu pai não estava presente, porque o espectáculo distraía muito a família, e o
trabalho ficava para trás.
Este serviço, o da tosquia, era o serviço agrícola
que se fazia com mais preceitos, uma verdadeira liturgia, rigorosa e
complicada, de que pouco ou nada subsiste.
Os tosquiadores formavam quadrilha, rigorosamente
subordinada a um mestre. Era este que tomava compromisso com os lavradores –
tal dia lá estamos; quem fazia ajustes; quem recebia o dinheiro; quem pagava
aos seus homens. Nenhum aprendiz entrava na quadrilha sem autorização do
mestre, o qual a não dava sem ouvir a sua gente. Não convinha às quadrilhas
organizadas que houvesse grande oferta de braços, porque isso faria baixar os
salários; e assim elas regulavam o aprendizado, sem todavia procederem de
maneira a estabelecerem, em seu proveito, uma verdadeira tirania, a que não
pudesse escapar o lavrador.
(...) Quando chegava o momento de começar o
trabalho, pela manhã, estava tudo as postos, cada tosquiador ao pé duma cabeça
empiolada, a tesoura na mão, à espera que o mestre desse o sinal de começar,
isto é, a primeira tesourada. Se algum imprudente se antecipava ao mestre,
pagava uma multa em dinheiro. O que entrava no tendal, alheio à quadrilha, sem
licença do mestre, não sendo o lavrador, era multado, e o próprio lavrador, se
descuidadamente ia sentar-se no monte de lã, também pagava multa. As ovelhas
brancas ficavam todas a um lado, o tosquiador que acabando de tosquiar uma
ovelha preta passava a tosquiar uma ovelha branca, sob pena de multa, ao dar a
primeira tesourada, tinha que dizer isto: - Em nome de Deus, em branco. Sucedia
algumas vezes ficar uma cabeça com uma guedelha de lã, por descuido. O maioral
agarrava essa cabeça, levava-a ao mestre que lhe cortava a guedelha, e impunha
uma multa ao descuidado tosquiador. A função do maioral, na tosquia,
limitava-se a enrolar a lã, formando velos, ajudando algumas vezes o
empiolador, que era sempre um ganhão, à escolha do feitor.
Um tosquiador não podia levantar mão do animal que
estava a tosquiar, sem licença do mestre, a não ser para dar um fio na tesoura,
ou untar as lâminas com azeite. Para isto havia no tendal uma pedra de amolar,
pertença do lavrador, e uma candeia com azeite, geralmente azeite de borras,
impróprio para a comida. Procedendo sem a observância destes preceitos, fosse
qual fosse o motivo porque o fizesse, incorria em multa. Resultavam ou podiam
resultar graves inconvenientes de se deixar uma cabeça, por muito tempo, em
meia tosquia, parte do corpo já sem a protecção da lã, a uma temperatura baixa,
e a outra parte ainda coberta de lã, a uma temperatura mais elevada. E assim
este preceito era, no final de contas, uma boa regra de higiene, disfarçada num
formalismo que à primeira vista parece infantil.
Às vezes, acabada a faina diária, se o maioral não
podia levar as cabeças tosquiadas a juntarem-se ao rebanho, era qualquer servo
da casa encarregado de o fazer, e muito instantemente lhe era recomendado que
não deixasse chegar o gado à água, se tinha de passar onde ele pudesse beber.
Sempre ouvi dizer ao compadre João Catarino: - Aos animais tosquiados faz mal a água por fora e
por dentro. Se lhes chove em cima, assim que largam o velo, morrem; se bebem,
ainda quentes da tesoura, morrem da mesma maneira, ou mais ainda. Vão lá saber
porque é isto?
À hora de largar o trabalho, sol posto, o que dava
a última tesourada era obrigado a dizer, ainda com os pés em cima da lã
cortada: - Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo! Um padre-nosso e uma
Avé-Maria pelas almas, quem souber e quiser. Não o fazendo pagava multa.
À hora das
refeições, todos lavavam as mãos, havendo para uso de todos uma grande bacia de
arame e uma toalha de estopa, que alguns dispensavam, limpando-se ao lenço. O mestre tinha que ser o primeiro; se algum
apressado metia as mão na bacia, antes dele, pagava multa.
E, afinal, para que era o dinheiro da multa?
Era para festejar Santa Bebianga, do dia da
adiafa. O vinho, então, era barato; uma canada custava um pataco. O lavrador
sempre mandava distribuir uma ração de vinho; o produto das multas sempre dava
para um meio almude, e assim a faina acabava por uma festa bachica, em que
todos ficavam alegres e raros se embebedavam.
Também eu pagava multas, umas vezes a dinheiro
outras vezes em géneros; nos dias de cosida pagava-se em pão mole e quente,
acabado de sair do forno, besuntado de manteiga, um grande bocado a cada homem.
Mesmo o bom tosquiador, o que era perfeito na sua
arte, deixava algumas vezes resvalar a tesoura da lã para a pele do animal,
ferindo-o sem gravidade. O curativo fazia-se com uma cortiça queimada, que se
passava na ferida, molhada em azeite, até se fazer negra a superfície sangrenta (Brito Camacho, Memórias
e Narrativas Alentejanas).
Mas a mesma tosquia ganha singeleza na poesia de
Francisco Bugalho: Rente, rente, rente/A tesoura corta./E na tarde
quente,/Junho está à porta.//Vem do campo em volta,/Mágico fulgor/De aroma, que
solta/O feno inda em flor.//Aperna-se o gado,/Pra tirar-lhe a lã./Ficou
encerrado/Desde esta manhã.//Rente, rente, rente;/Que a tesoura corta/E, na
tarde quente,/Junho está à porta.//Um halo de neve,/Espuma ou algodão,/Envolve
de leve/As reses no chão./Na luz forte, em roda/Zumbem as abelhas./E há balidos
soltos/E tristes de ovelhas./E ao soltar aquelas,/Livres, já, dos
velos,/parecem gazelas,/Em saltos singelos.//Rente,rente, rente,/A tesoura
corta./E, na tarde quente,/Junho está à porta (Francisco Bugalho, Poesia).
A tipologia e funções específicas dos pastores
alentejanos são-nos dadas por Silva Picão: Pondo de parte os ajudas, que nada
oferecem digno de menção, os pastores constam; do maioral das ovelhas, que é o
chefe; do carneireiro, que guarda os carneiros, e de dois, três ou quatros
entregues mais, sem denominação especial, por igualmente a não terem os
rebanhos que apascentam. Quando se apartam os alavões – rebanhos de ovelhas que
na primavera se ordenham para o fabrico do queijo -, os entregues e ajudas
respectivos, chamam-se alavoeiros.
Os pastores – além de guardarem e apascentarem o
gado ovino – cumpre-lhes mais o seguinte: mudar os bardos, ou redis, uma ou
duas vezes por dia, conforme a época, para aproveitamento dos estrumes; limpar
as reses das cagaitas volumosas que se lhe formarem na lã, próximo das tetas,
dos testículos e da cauda; catarem, com atenção, o seu rebanho, logo que o
suspeitem invadido de ronha ou de bexiga, marcando as cabeças que encontrarem
atacadas, procedendo ao seu imediato curativo e repetindo-o enquanto for
necessário; finalmente, regular as horas da solta e recolhimento dos animais,
em harmonia com a época, escassês ou abundância de pastos, condições do gado e
estado do tempo.
Maioral – Chefe de todos os pastores, apascenta
igualmente um rebanho, sempre o que demanda maior dedicação e cuidados. Assim,
no outono e no inverno, anda com o das ovelhas próximas a parir e as
recém-paridas, ou seja a chicada mais nova. Na primavera e no verão, guarda o
do borregos ou borregas, e na falta destes, outro que também careça de pastor
experimentado.
Afora os deveres comuns a todos os pastores,
cumpre-lhe: de acordo com o lavrador e em resultado das ordens e autorizações
que tiver dele, indagar do passadio e do estado sanitário dos rebanhos,
fiscalizando os entregues e recomendando-lhes o que for conveniente; empregar
as cautelas possíveis para diminuir as probalidades de invasões epizoóticas,
sempre que essas doenças existam nos gados dos vizinhos; esforçar-se por
atenuar semelhantes estragos quando por ventura a moléstia acometa aqueles que
estão sob a sua responsabilidade, já obrigando os entregues a entregarem os tratamentos
que lhe forem recomendados, já auxiliando-os nesse propósito. Mais lhes
compete: contar, de vez em quando, o gado todo, inquirindo do número de reses
mortas e das supostas ou verdadeiras causas que as vitimaram, participando tudo
ao amo, prender as ovelhas recém-paridas que rejeitem as crias para, deste
modo, conseguir que as aceitem afinal, como é provável; dobrar os borregos,
quando sejam menos que as ovelhas, por efeito de morrinhas; assinalar nas
orelhas o gado novo e bem assim cortar-lhes o rabo, se este antigo costume
ainda persistir; ferrar no focinho, com o ferro da “casa” e durante o inverno,
os malatos e malatas; com o auxílio dos entregues, rabejar, nas vésperas de se
apartarem os alavões, as ovelhas respectivas, tosquiando-lhes a lã dos úberes e
partes vizinhas que estorvem o ordenho; fazer as apartações consentâneas a cada
época e às necessidades de ocasião; escolher os borregos para carneiros de
casta; capar os malatos e os carneiros incapazes de prosseguirem como
reprodutores; refugar as badanas, assinalando-as; marcar a cal branca o gado
preto e a pês no branco, todas as reses lanígeras, uma vez por ano, quinze dias
depois da tosquia; repetir o mesmo sinal ou pôr ainda outro, nas partidas e
gado que forem a qualquer feira; assistir enfim ao tendal da tosquia
superintendendo esse serviço (Silva
Picão, Através dos Campos).
Pastores do Alto, Pastores do Baixo
Dois textos jornalísticos-literários descrevem
genericamente a vidas dos pastores. Vejamos um de minha autoria, com origem em
recolha etngráfica de 1980 e publicado em 1994 no Jornal Terras do Cante: Era
o verão de Julho. Na noite quente de sufoco nem uma folha bolia. Ainda vínhamos
longe e já os cães ladravam anunciando a nossa chegada. Por entre os vultos
medonhos das azinheiras, as luzes do carro deixavam ver os coelhos novos
fugindo e alguns pássaros assustados que esvoaçavam. Quando chegámos já os
pastores sustinham os rafeiros com os cajados e algumas palavras de acalmia -
Quietos, que é gente amiga!
Junto da choupana de colmo velho, repassado do sol
e da chuva, sentados em mochos de azinho, pusemo-nos à conversa. O ti Ramos
tomou a dianteira e puxou do saber como quem puxa da vida para a dar a beber -
Aqui à volta - dizia ele na sua voz sentida, pela alegria de ter quem o escutasse
- , Cabida, Alfarrobeira, Carrascal, Camoeira, Boa-Fé e Peramanca, é tudo chão
areento, pedra solta de granito, terras fracas. A pastagem mal dá para as
ovelhas. Agora para Setembro, se o tempo ajudar, já elas terão alguma coisa que
comer - Águas novas verdadeiras, pelo S. Mateus as primeiras.
A noite não refrescava e o ti Ramos de camisola de
alças, branca e de fina rede, mostrava o peito suado que, de vez em quando,
limpava com um lenço velho amarrotado.
É assim - continuava ele lendo na memória as
palavras certas que oferecia à minha curiosidade de aprendiz -, se a chuva é
demais, andam aí os animais pateando com a doença, até que deixam de andar.
Vai-te embora Janeiro, que ainda cá deixas a ovelha e o carneiro; mas vem aí o
teu irmão Fevereiro, nem a ovelha nem o carneiro, nem a pele em cima do
ganadeiro - apodrece tudo com água.
Perto ouvia-se um piar estranho que rapidamente o
ti Manel identificou.
São os noitibós, só de noite é que cantam. A gente
mal dá por eles, parecem paus e são mais pequenos que perdizes - têm pés e
pernas mas não andam. Com aquela choradeira fazem mangação dos ganadeiros -
Algaravão, tão ruim, tão ruim, tão ruim.
A conversa estava boa e o ti Ramos pegava-lhe
agora para explicar que as trovoadas que vêm de Espanha, a água de pedra e os
ventos do lado do pego, é que são o pior; porque a geada quando vem no tempo
certo até faz bem às searas - Geada em Janeiro é estrumada de carneiro. Em
Abril pintam-se os campos de mil flores e o gado até corre de contente com
tanta comida - trevo, orelha de lebre, palanque, rabo de zorra, magarça, erva
azeda, cornicho de cabra, rabo de gato e trigo de perdiz. Abril, águas mil,
coadas por um candil (é a velha que está lá em cima a peneirar). E então se o
Maio vem a favor, o patrão pode esperar que a carteira engorda de certezinha -
Maio pardo enche o saco e farta o gado. P’rá seara gradar - Maio pardo ventoso
faz o ano formoso. Lá para Junho já as searas começam a secar e se o vento é
espanhol - S. João, o vento suão faz bom pão.
Enquanto falavam os pastores ouviam os sons da
noite, cheiravam o ar e observavam, cismando, o céu estrelado.
Os seus olhos e ouvidos e o nariz acostumados,
pareciam os dos animais noctívagos capazes de reconhecerem qualquer sinal a
quilómetros. Afagavam o pêlo dos cães e, de quando em quando, lá ia uma pingota
de água fresca - barril à boca e ouvia-se correr em bica.
Dessa chuva que cai e faz correr os ribeiros -
dizia-me o ti Manel abrindo a boca em jeito de sono -, ficam aí uns olharões
que têm erva todo o ano, porque quando vem o Verão isto aqui seca-se tudo, e se
não fossem alguns chafarizes e poços o gado ia-se todo com sede.
A ribeira de Valverde fica lá muito longe, e o que
isto era de água senhor! Havia aqui p’ra cima de trezentos nascentes. Agora
p’ra lhe darmos de beber temos que passar horas a tirar água com a cegonha e o
caldeiro e não as damos satisfeitas.
A noite ia alta e, para gente que tinha que se
deitar com as galinhas e levantar-se com os galos era hora da deita. Mas como a
prosa estava a agradar, o ti Ramos falava-me agora de quando, com nove anos, já
ajuda do pai, aprendia a vida de pastor. A escola, depressa me cansei dela. Meu
pai, como precisava de mim, puxou-me p’rá lida e, com o farnel que minha mãe me
arranjava e uma varinha de zambujo, lá comecei a andar atrás delas. Ainda
trabalhei com uma parelha mas o meu destino era este.
A música bucólica das esquilas e chocalhos
ouvia-se perto. As ovelhas no aprisco esperavam a madrugada para a ordenha, mas
o ti Ramos não desistia de me contar a sua
vida. Casei cedo e ao fim de nove dias de casado estive três meses sem
ver a minha mulher por causa destas velhacas. Tinha que levar os rebanhos para
onde havia pastagem, ao rigor do tempo - de Verão, calor de rachar e um homem a
desfazer-se em suor; d’Inverno, frio, chuva, vento e o meu abrigo era debaixo
das azinheiras com o aconchego duns safões, embrulhado num gabãozito ou numa
samarra. Nas horas de tristeza puxava da navalha afiada e punha-me a fazer
desenhos na cortiça ou no pau de buxo, e às vezes saíam caixas bonitas,
colheres prendadas, que oferecia à mulher no regresso. Outras vezes punha-me a
inventar décimas. Quer ouvir estas?
Francisco José Ramos
Na herdade do Zambujeiro
Não foi capaz de vencer
Um ratinho faroleiro
Andava arranjando a comida
Aquele rato valente
E disse o rapaz de repente
Vou-te a acabar com a vida
Temos a zaragata seguida
Já os dois brigar vamos
Dando pulos que nem gamos
E muitas voltas no sentido
Pois ainda pelo rato foi mordido
Francisco José Ramos.
À roda dum chaparro
É que foi a brincadeira
Pulava de toda a maneira-
Ah, ladrão que não te agarro
Mas se nas minhas mãos te ençarro
Deixas de ser tão altaneiro
E serias tu o primeiro
Que me abalavas fugindo
Pois ainda ficou existindo
Na herdade do Zambujeiro
Apanhei-o com a mão
Para o pôr em degredo
Mas ele trincou-me um dedo
E de repente pulou p’ró chão
Viu-se em grande aflição
Com o seu nobre saber
Foi-se num buraco esconder
E dos olhinhos fez as luzes
E fiquei eu fazendo cruzes
Não fui capaz de o vencer
Com onze anos de idade
Eu meti-me nesta baralha
Eu não puxei da navalha
Não fiz a minha vontade
Ainda ficas em liberdade
Passeando no ribeiro
Mas olha que eu sou ganadeiro
Ainda por aqui torno a vir
E ficou-se de mim a rir
Um ratinho faroleiro
O ti Ramos ainda fumou o cigarro da sossega e,
depois do ti Manel molhar as goelas, deitados numas enxergas, para ali
adormeceram à espera da aurora.
Ainda mal se via e já os pastores lavavam a cabeça
toda num cocho de cortiça, suspenso numa tripeça de azinho, preparando-se para
a trasfega da ordenha. Desencasqueadas as mãos com lixívia, o rebanho num
repente alvoroçou-se, levantando uma densa poalha. Enquanto iam espremendo os
amojos com o maneio ritmado da muita experiência, ouvia-se cair em esguichos no
ferrado o leite alvo e grosso, e como eu não os largasse com perguntas, lá iam
falando como podiam, pois dobrados pelos rins a clareza da voz perdia-se.
Quinhentas ovelhas dão p’rái cento e cinquenta
litros de leite. Faz-se muita força nos pulsos e dão uma grande sova na gente.
Quando chegamos cá acima vimos moídos. Estas não têm muito leite e mesmo essas
que têm não dão jeito como as outras. Quando o leite lhe foge p’ró espinhaço
poêm-se malucas. Venha cá o cavalo! Selvagem! Olha p’ráquela, está
desencabrestada. Ó, aí - Era o ti Manel praguejando. Entre tantos ovelhas
parecia mentira os pastores conhecerem-nas todas pelos nomes. É verdade a
palavra evangélica que diz: O bom pastor conhece as suas ovelhas.
O dia clareava lentamente e, para não perderem a
fresquidão do amanhecer, os homens redobravam de força. O ti Ramos, entretanto,
ensinava-me a prenhez dos animais, pois se a cobrição é no Verão (a ovelha anda
com o borrego na barriga cinco meses), no Inverno é que as crias nascem, e ao
ar livre, que vêm lãzudas. Esta está a dormir! Cães, poucos, que o pão está
caro. Esta é das minhas. Ganadeiro sem puvilhal não andava aqui.
O ti Manel lembrava-se da paga d’outrora
comparando-a com os vencimentos de hoje. Antigamente o patrão dava pastagem
para setenta ovelhas e as comedias - trinta quilos de farinha, dois litros de
azeite e duzentos escudos por mês, mais cinco alqueires de trigo por ano e, à
vezes, um toucinhito de porco. Esta ordinária hoje está bruta! Olha, a Velha já
não pode com as tamanquinhas.
Agora - dizia-me o ti Ramos um pouco rouco do pó
que lhe entupia a garganta - ganhamos cinco contos e seiscentos por mês e
pastagem para sessenta ovelhas. É miséria, mas noutro tempo ainda era pior.
Já quase no fim dos centro e trinta metros do
aprisco, estafados da sova, os pastores ainda encontraram alento para me
dizerem: Até às nove horas vão pastando, mas depois passam o calor à sombra das
azinheiras - fazem da noite dia e do dia noite.
Acabada a trasfega, recolhidos os ferrados cheios
de leite ainda quente, ouvia-se da boca do ti Manel, em jeito de fim de labor,
a oração - Seja louvado nosso Senhor Jesus Cristo. E o ti Ramos respondia-lhe -
Assim seja. Chegara então o momento de coar o leite para dentro dum cântaro e
de lhe deitar o químico para não azedar, até que o viessem buscar para o
levarem para a rouparia. A manhã crescera e o rebanho já se via ao longe na
planície com o ti Manel gritando aos cães e lançando às patas de uma ovelha
tresmalhada o gravato. A música da terra enchia o ar luminoso dessa alegria
que, misteriosamente, nos desfaz com lágrimas - dor e prazer irmanados,
estranhos sinais da natureza terrestre do homem.
Vejamos outro texto da autoria de João Mário
Caldeira com o título “O guardador do tempo”: O pastor alentejano,
habitualmente chamado de moiral, é um verdadeiro tesouro do património humano
da região.
Entrava noutros tempos ao serviço das
herdades com um contrato anual que se continuava muitas vezes por toda a vida, se por
informes do feitor ganhava a confiança do patrão.
A entrada ao serviço do proprietário não se
fazia pela Santa Maria de Agosto, como os restantes criados da lavoura. Os
pastores eram concertados em casa do patrão no dia de S. Pedro por razões que
se prendem com o ciclo de maneio do gado ovino. S. Pedro ficou assim ligado à
vida dos pastores desde tempos muito antigos, acabando por se consagrar como
seu patrono de direito.
(...) É como uma estátua na planície. (...)
Chapéu preto de aba larga, o pelico e os safões de pele de ovelha. Calças de
saragoça metidas nas botas de atanado. O cajado de volta, em madeira de faia.
Às costas a mochila de pele surrada, o surrão. Com tirantes apanhados pelo
peito. Atrás o seu melhor ajuda, o Serra d’Aires, cão especialista na condução
de gado.
Aguenta a pé firme o vento cortante de
nordeste, o charôco, que no inverno greta a pele e se entranha na carne.
Estoicamente suporta os sóis alentejanos, às vezes sem uma sombra, quando o
suão ou vento espanhol “esfarela os ossos”, como disse José Régio. O enorme
guarda-chuva de cotim azul que usa sempre a tiracolo livra-o das maiores torreiras
e das chuvas repentinas.
Dormia noutro tempo ao lado das ovelhas num
abrigo transportável, a feixinha, cioso da riqueza que lhe davam a guardar.
A feixinha era um resguardo de precária
construção. Resumia-se a duas peças, dois engradados de ramos de azinheira de
forma rectangular, onde se aplicavam camadas sobrepostas de junco para facultar
a escorrência das águas. Os dois corpos encostavam-se um ao outro pela parte
superior e mais extensa, formando uma espécie de bivaque, tenda de campanha de
estrutura vegetal.(...) A feixinha não garantia qualquer isolamento térmico,
mas protegia do sol e da chuva.
Já lá vão os tempos em que nas gélidas noites de
inverno se viam nas breves elevações da planície fogaréus a anunciar os abrigos
dos pastores. Lenha de azinho não faltava, e o moiral deixava aceso toda a
noite, frente à feixinha, aquele que foi sempre o melhor companheiro do homem,
o fogo milenar. Nele cozinhava a ceia frugal, à volta dele comia, sentado no
mocho de cortiça. Nas suas brasas acendia gostosamente o último cigarro antes
da deita, sob uma abóbada de mil estrelas.
Exorcizador dos fantasmas que habitam a noite dos
homens, compensador do desconforto e do frio, o pastor deixa o lume aceso até
arder o último pau de azinho. Como um altar votivo a Endovélico.
Sob o abrigo precário, na enxerga de palha de
centeio armada em cima de estacas de azinheira, continua a remoer a solidão dos
dias. Deita-se vestido, tapado com a manta de lã e o pelico, se é inverno.
Adormece num sono breve, sempre suspenso pelo berro ou chocalho de uma ovelha
incomodada. O ladrar do rafeiro, guarda fiel nas horas más, deixa-o de
sobreaviso.
Ao lado da cama larga o chapeirão negro que
imediatamente enfia logo que põe os pés no chão. Levanta-se ao som do galo, mal
dormido. “Ao romper da bela aurora sai o pastor da choupana”. Como primeira
refeição de inverno prepara ao lume as migas canhas acompanhadas com leite
acabado de ordenhar ou a açorda de alho rescendente. No verão, com a manhã
ainda mal refeita da canícula dos dias, pisa alho com sal na pelangana vidrada,
deita-lhe um fio de azeite, duas colhes de vinagre e água que abonde. Miga
nesse caldo fatias de pão endurecido que tira do alforge e come com satisfação
o caspacho ou vinagrada refrescante.
As ovelhas permanecem a seu lado na cerca de rede
que o pastor vai mudando de tempos a tempos para estrumação uniforme da terra.
Ao esterco de ovelha se deviam as férteis terras de malhadio ou malhadal, onde
os almocreves deitavam com mais esperança a braçada de semente.
De inverno o pastor solta as ovelhas quando o sol
já vai alto para deixar secar no prado, a orvalheira. De Verão, logo que rompe
o sol, as ovelhas deixam de comer, por isso a volta do gado tem que ser feita a
meio da noite, quando o ar refresca os pastos. Então, como fantasmas, o moiral
e o cão cirandam na campina atrás do som dos chocalhos de ovelhas imaginadas,
obrigadas a matar de noite a fome que pertence aos dias. O entendimento que tem
do ritmo biológico dos animais que apascenta, a decifração de céus e ventos, o
compasso de sóis e luas, o pulsar das estações são saberes que domina na
perfeição, aprendidos desde criança quando começa como ajuda de pastor. Tem da
botânica um sentido prático e utilitário, há ervas melhores e ervas piores
consoante a qualidade que acrescentam à teta da ovelha. Esse conhecimento
aprofundado do rebanho e dos prados,, todo o seu trabalho continuado, dia e
noite, é tido ainda como pedra-de-toque para a qualidade do leite. Dizem os
roupeiros que o leite funde de acordo com os méritos do pastor. No úbere da
ovelha se começa a fabricar, antes de tudo, a qualidade de um bom queijo.
Atrás do gado, os dias são tão grandes quanto a
sua resignação. Fica com “uma nódoa no peito de se encostar ao cajado”. Farto
de estar de pé, descansa o corpo assentando-se numa pedra ou num marco de propriedade, em
lugar cimeiro onde não perca de vista o rebanho movediço. Os olhos percorrem o
gado de animal em animal, mecanicamente. O pensamento gira por outras paragens,
acompanhando o sonho do homem solitário.
Às vezes queima o tempo engendrando poesia. As
décimas são a forma usual com que verseja. Os assuntos são vários, crítica
social, locubrações sobre a vida e sobre o mundo, não raro motivos eróticos que
o compensam do isolamento. Versa a sua rima por vezes o absurdo num desejo de
subverter a ordem das coisas como revolta ao ritmo inexorável da sua
existência. Outras vezes estão os versos repassados de um lirismo onde afloram
as “melancolias do campo”.
Em monólogos infindáveis decorre a vida do moiral
da planície.
Quando calha saca da faca e escava baixos-relevos
em cornos de vaca. Ficaram célebres as chaves ornamentadas à navalha pelos
pastores do Alentejo. Nelas se transportava o azeite e o vinagre para as
comidas no campo. Em secções mais pequenas de corno, as azeitonas, o sal, o
chumbo, a pólvora do caçador. Eram recipientes duráveis, estanques, de fácil
transporte, resistentes aos maiores tombos que levavam nos caminhos. A tampa de
cortiça com pega de pau de freixo ou de esteva seca, era também profusamente trabalhada.
Esculpe outras vezes colheres em pedaços de
madeira ou em corno de carneiro amolecido ao fogo que enfeita com arabescos.
Em todos os trabalhos deixa a marca dos dias, como
se ao gravar a data de fabrico pudesse balizar a solidão temporal onde se
afoga. Na imensa planura o tempo é um conceito sem medida, como o espaço. O
alentejano nunca diz que tem ou não tem tempo, diz antes se tem ou não tem
vagar. E quase sempre o tem. Miguel Torga reparou nisso quando descreveu o
Alentejo. Diz ele que a região “é um imenso relógio de sol onde o homem faz de
ponteiro do tempo”.
O pastor é o próprio tempo, náufrago dos dias na
enorme extensão do descampado.
Enquanto o gado busca no prado a erva mais tenra,
a semente mais apetecida, o pastor entretém-se numa criatividade que é quase
sobrevivência. Assim ocupado “passa mais depressa o dia”, como diz a moda cantada na taberna da aldeia.
À taberna chega o pastor de fugida, numa tarde de
sábado quando vem mudar de roupa ou por ocasião duma festa. Aparece como um
trânsfuga, em sobressalto. Bebe uns copos com os companheiros de ocasião e ala
para o pé do gado que ficou no acarro dentro da rede. Mesmo alvoroçado com os
vapores do álcool, às vezes com copos a mais, o pastor não pode faltar. Se a
demora é mais prolongada, todo o gado berra por pastagem. O estômago da ovelha
tem lá dentro um relógio que não aguenta as veleidades do moiral.
A vida do pastor, sempre presa e necessariamente
solitária não lhe granjeava simpatias, especialmente entre o mulherio, que
preferia para companheiro o ganhão ou o almocreve. Estes eram outra gente, mais
disponível, menos pensativa, com um ar mais alegre e outro modo de trajar.
Tinham conhecimentos mais diversificados na faina dos campos onde aprendiam a
conviver com as mulheres, especialmente nas ceifas e na apanha da azeitona.
O garbo de um moço de lavoura, aspirante a
almocreve, de safões de pele lisa, atados à volta das calças de cotim que metia
nas botas altas de bezerro, camisa de quadrado miúdo com lenço branco à volta
do pescoço, fazia tremer de emoção qualquer moça camponesa. A figura
ensimesmada do pastor, meio eremita, de vestimenta pesada, com fama de fauno na
relação com ovelhas, cheirando a bodum, afastava pelo contrário as raparigas
casadoiras.
Daí achar-se estranho e no mínimo lamentável que
eles alguma vez ganhassem preponderância sobre outros elementos da classe
trabalhadora como lamenta uma antiga quadra que ainda hoje começa as modas: “Na aldeia da Amareleja/quem
manda são os pastores/já querem roubar as moças/aos pobres trabalhadores”.
Só razões ligadas à sua condição de vida poderão,
como se disse, estar por detrás de tal discriminação, já que o pastor tinha
entre os demais criados da lavoura uma situação económica privilegiada. Além de
ganhar soldada e comedorias, era-lhe consentido possuir pugulhal, isto é, ter
um certo numero de ovelhas suas no rebanho do proprietário.
Em tempos passados, nas herdades dos grandes
lavradores alentejanos que possuíam alguns milhares de cabeças de gado
divididas em vários rebanhos, havia que estabelecer regras de hierarquização
entre os pastores. Para se ter ideia do que na região se passava há mais de um
século, sigam-se os apontamentos do Conde de Ficalho (1837-1903), escritor e
grande proprietário do termo do Serpa que nas suas Notas Históricas acerca de
Serpa nos elucida sobre o assunto. Diz ele que rabadão, do árabe rabb ad-dham,
era o pastor chefe que fiscalizava e inspecionava todos os rebanhos de ovelhas
do mesmo dono. Maioral é o
primeiro pastor de cada rebanho e ajuda é o segundo. Zagal é um rapaz de treze
ou catorze anos que auxilia a guardar o gado. É filho normalmente de um dos
primeiros, às vezes nem ganha soldada e serve só pelo comer.
Nesses tempos, nas imensas propriedades, tudo
decorria num ritmo sazonal milenarmente repetido. Em meados de Fevereiro, ou
até antes, dava-se início à ordenha. Tinha o pastor que proceder previamente à
rabeja, que consistia na tosquia local de alguma lã suja que podia prejudicar o
acto da mungidura. Rabejadas as ovelhas e apartados os borregos para uma
pastagem distante onde as mães não os vissem ou ouvissem, podia iniciar-se a
dura faina de mungir o gado. Os animais eram então encaminhados para um curral
de rede com uma saída alongada em forma de corredor que se chamava aprisco onde
em fila indiana, todas as ovelhas eram obrigadas a passar. Os dedos
industriados do pastor obrigavam a que cada uma aí deitasse a sua quota do
líquido precioso. O aprisco era, além de corredor, um escorredouro de leite.
Quando pela primeira vez o leite quente da ovelha
esguichava para dentro do ferrado, podia dizer-se que começava o alavão,
palavra derivada do árabe al-labban, leite, que no Alentejo abrange todas as
tarefas relacionadas com a produção de queijo. Ao pastor não compete senão
ordenhar (e muitas vezes até nem isso), pois que o fabrico do queijo no monte
da herdade estava a cargo de um outro especialista, o roupeiro (João Mário Caldeira, A Margem Esquerda do
Guadiana – As Gentes, a terra, os bichos).
A Arte de Queijar
Na sequência da transcrição acima, podemos rever
os trabalhos particulares da ordenha e da arte de queijar a partir do texto de
J. A. Capela e Silva, Os Rompeiros: Quando chegava o tempo das queijeiras, o
Merendeiras, estivesse lá onde estivesse, dava um jeito à vida, e ia caminhando
da aldeia com a copa.(...) E lá ia a caminho da aldeia com tenções de não
voltar tão cedo. E não se enganava. Em breve lhe falavam para roupeiro com bom
ajuste, porque era demais conhecido o seu saber na arte de queijar.
Apartam-se os borregos, os da casa a um lado, os
dos puvilhais a outro, e com as ovelhas desafilhadas, forma-se o alavão.
Asseia-se a queijeira. Paredes com quatro demãos,
pezinhos de roxo-rei, pingas tiradas com azeite, azadas esfregadas, cinchos que
parecem de prata enfiados na cana, almofariz novo para o sal, comprado no S.
Mateus, banca escaqueada, cântaros polidos com flor de cinza, alguidares e
pelanganas armados na parede a formar castelo, latas para requeijões, peneiro
de crina em cima da cruz da cama, panos e mais trapiça correlativa, eis os complicados
preparatórios da oficina tecnológica que ia ter por chefe o João Ameixa, mais
conhecido pelo anexim de Merendeiras.
Ainda a manhã lá vem Deus sabe onde, e já o
Merendeiras escarranchado na besta do leite, leiteiras de esparto inchadas com
os dois cântaros, ia a caminho do aprisco.
Rompeiros se chamavam antigamente aos entregues
das queijarias. Eram eles que despertavam as famílias nos montes, que abalavam
primeiro, que rompiam campo fora, mesmo na época de lavouras ou de ceifas, que
requerem madrugar. Eram os rompeiros. O tempo deturpou o nome mas o estilo
ficou.
O alavão encerrado de véspera, mancha esguia
na terra do alqueive, sopra furiosamente, nesse respirar característico de
monstro constipado e ranhoso. As ovelhas em massa compacta que não deixa passar
um chapéu com caranços da filharada que lhes arrebataram, estão cansadas de
berrar. A chegada da besta do leite, e do roupeiro, ouvindo o tic-tac do
chocalho, o balar em último arranco, angustioso, redobra.
O ar húmido da manhã, e o murmurar da ramaria do
arvoredo, parece que adensam aquele desvairamento comovente, mais carinhosas,
de olhares esgazeados, suplicando a restituição dos filhos que os homens lhes
arrebataram. Eh! Moirááááál !! Eh! Lááááá!! Seja louvado Nosso Senhor Jesus
Cristo! Venha Vocemecê com Deus, mano João!
Começa o ordenho. As ovelhas são agarradas
pelos amôjos e escarranchadas sobre o ferrado. Ouve-se o esguichar do leite...
e os dois homens, roupeiro e alavoeiro, ombro a ombro, soltando estribilhos, lá
iam passando as ovelhas para trás...
(...) Ao nascer do sol já o roupeiro está de
volta. Logo que chega à queijaria, faz lume para aquecer as águas, e entretanto
dispõe as coisas para queijar o leite. Depois mete os cântaros na panela de
água quente, e mexe com uma cana o leite, até ficar morno. Então ata na boca da
azada os dois coadores, põe sobre eles dois punhados de sal, um por cada
cântaro, e côa o leite que vai dissolvendo e arrastando o sal. É a esta
operação que chamam salgar na presa. Por fim lançam o cardo – água de maceração
do cardo de coalhar – que é também coado no mesmo coador do leite, tapam a
azada, envolvem-na num cobertor, e deixam-na próximo do lume o tempo necessário
para coalhar o leite.
Logo que a coagulação se realizou, tiram por duas
vezes a coalhada da vasilha, e estendem-na na banca, onde é calcada à mão, para
se lhe extrair o soro, começando então o fabrico do queijo. Fazem uma bola com
as duas mãos, que depois de bem espremida, é colocada no cincho. Por fim
polvilham os queijos de sal, e vão para o caniço.
Depois fazem os requeijões, levando ao lume no
tacho do atabefe, o soro que ficou do queijo, que é mexido constantemente com
cana, até sobrenadar o requeijão. Retira-se a vasilha do lume, e com uma colher
própria, vão enchendo de cogulo as tradicionais formas, ou lançando a massa em
panos próprios a que depois juntam as pontas, e põem a escorrer (J. A. Capela e Silva, Ganharias).
No que respeita ao fabrico do famoso queijo de
Serpa, é importante o rigoroso texto de João Mário Caldeira, que nos dá, em
palavras de verdadeiro sabor alentejano, os costumes da Margem Esquerda: O
roupeiro é assim chamado por trabalhar na rouparia, oficina onde se fabrica o
queijo de ovelha na Margem Esquerda do Guadiana. Esse local, por sua vez,
recebe tal nome por utilizar roupa em grande quantidade. São os coadouros,
panos de lã com os quais se filtra o leite, as cintas, tiras brancas de pano
cru que servem para cingir o queijo, as fraldas onde dependurado escorre o
requeijão.
Repetidamente lavada, toda essa roupa tem estendal
permanente nas imediações da queijaria. Daí a razão do nome dado às fábricas
artesanais de queijo desta região do sudeste alentejano.
O roupeiro é um alentejano de laboratório,
trabalhador especializado que aprendeu a activar e controlar de forma empírica
os complicados fenómenos da evolução bacteriana que transformam o leite em
queijo. Esse é, no essencial, o segredo da sua arte.
(...) Era em tempos contratado sazonalmente pelos
proprietários da região para dirigir o fabrico do queijo de ovelha nas grandes
casas de lavoura. Nas instalações de um dos montes da exploração agrícola
montava a rouparia, que funcionava desde meados de Fevereiro até os pastores
darem por terminada a ordenha de todo o gado do patrão, coisa que atirava lá
para o fim do mês de Maio. Entretanto as tarefas da cura do produto
prolongavam-se por mais tempo, no mínimo entre um mês e meio e os dois meses.
Para a ajuda de tarefa tão pesada, era disponibilizado outro pessoal concertado
na herdade, nomeadamente mulheres e moços do monte.
Na rua do monte era plantado o arquiz, ramo seco e
previamente desbastado de uma azinheira, em cujos galhos se punha a secar toda
a roupa utilizada na laboração e os cântaros de lata para o transporte do
leite, depois de bem escaldados.
(...) O roupeiro era por isso um estranho, um
artista, uma classe à parte entre o pessoal da ganharia do monte, constituído
na sua maioria por almocreves e ganadeiros.
Alguém lhe chamou alquimista. Talvez pela
misteriosa sabedoria de adicionar ao leite as pétalas roxas da alcachofra
selvagem. Pétalas que pisa em almofarizes de pedra, como na antiga alquimia e
que deixa em infusão de um dia para o outro até se transformarem num fermento
milagroso. Adicionado ao leite, dele nasce a massa e desta o queijo.
(...) Depois de adicionado o cardo até à
consumação do produto final, o queijo de ovelha, disco alourado, de crosta
branda, rescendente, que responde aos maiores desafios do paladar, vai um mundo
de operações.
O alquimista tem de dar lugar ao mago. Somente com
os movimentos das mãos o roupeiro vai tirar da cartola que é a queijeira um
tesouro precioso.
Para tanto, muitas voltas tem que dar o leite
depois de retirado da teta da ovelha.
(...) As primeiras são a filtragem e a coagulação.
Delas depende em boa parte a qualidade do queijo que há-de ser.
À filtragem do leite dedica o roupeiro cuidados
especiais. Os coadouros ou coadeiros que utiliza são panos muito fortes de lã
áspera e grossa, dobrados tantas vezes quantas as necessárias. Na coagem de
alguns leites trazidos do local da ordenha em piores condições de pureza, chega
o roupeiro a empregar quarenta dobras para cem litros de produto! Mal pareceria
que os entendidos viessem acusar o fabricante de ter usado pouca roupa ao
encontrarem impurezas no queijo.
Numa das últimas dobras dos coadouros é colocado o
sal necessário, que se vai dissolvendo à medida que o leite passa na filtragem.
Aproximadamente quinhentas gramas por cem litros de leite. Esta operação tem o
nome muito sugestivo de salga na presa.
Após a filtragem e a salga, procede-se às tarefas
da coagulação. A sua velocidade tem a ver com a consistência da massa. Não se
pergunte ao artesão queijeiro o porquê desta relação. Ele só sabe que a massa
fica tanto mais rija quanto mais rápida for a formação da coalhada. Por isso ao
adicionar-se ao leite a infusão de cardo levemente aquecida, esta não pode
provocar a aceleração exagerada do coalho nem, pelo contrário, demorá-lo
excessivamente.
A coagulação rápida gera queijos ásperos, com
sabor acentuado a cardo. A sua demora dá origem a queijos de paladar indefinido
e de maturação complicada.
A infusão que se adiciona ao leite é feita com
antecipação de um dia. O roupeiro pisa o cardo no almofariz com um pouco de
sal. Mete depois a mistura num recipiente de louça, adicionando-lhe água quanto
baste, deixando-a ficar até ao dia seguinte.
Antes da sua incorporação côa-se a mistura através
de um pano para evitar a passagem das partículas do cardo. Depois inicia-se a
operação. Com a lentidão de um ritual, o roupeiro vai deitando fermento no
asado, vasilha de barro com duas asas onde o leite permanece coado e
previamente salgado. Pausadamente a mistura vai sendo homogeneizada com o
palheto, espécie de grande espátula de pau. Está-se no domínio da alquimia. A
quantidade administrada é ditada pela sensibilidade prática do mestre. Está
escrito na sua cartilha que a duração óptima da coalhada deve rondar os noventa
minutos. Assim mesmo, sem tirar nem pôr.”
Coalhada – “Depois de se certificar que a coalhada
está realmente pronta, começa a mexê-la com o palheto, fazendo os movimentos
sacramentais transmitidos de pais para filhos. São movimentos lentos em cruz,
formando espirais, desenhando quadrados, lavrando em diagonal, dentro de uma
ordem estabelecida ao longo de milénios. (...) Mexida a coalhada a contento, o
roupeiro leva o asado para junto da queijeira, mesa de pinho cujo tampo deve
ser previamente aquecido com água a uma temperatura próxima da temperatura da
massa que se vai trabalhar.”
O tampo da queijeira – (...) “rectângulo de cerca
de dois metros de comprido, com rebordo de vinte centímetros de altura em toda
a volta e que num dos lados se prolonga desnivelado em bico aberto, é o teatro
de fabrico. É um campo húmido, morno, liso, impregnado da patine da laboração
em que o pinho ganhou uma nobreza viscosa, amarelo-acastanhada.
Cinchos – (...) “o roupeiro vaza para os cinchos a
coalhada do asado. Os cinchos, de folha ou de madeira, são cintas perfuradas em
toda a superfície a que se pode dar aperto gradual, podendo prender na dimensão
desejada. Nesta primeira operação estão na largura máxima, muitíssimo acima do
diâmetro a que irá ficar o queijo. A massa coalhada vem em bruto, meio
endurecida, aos borbotões. Dentro dos cinchos há que migá-la, desfazê-la até se
tornar massa uniforme. Só depois o roupeiro inicia o esgotamento do soro, o
almece, calcando a massa com ambas as mãos e reduzindo progressivamente o
diâmetro dos cinchos.”
Repiso – “Depois do esgotamento do soro, o repiso
é a operação que se segue. (...) A massa vai ser novamente desfeita para uma
melhor homogeneização. Para tanto tira-se a massa dos cinchos onde já tinha
sido bastante espremida e espalha-se de novo sobre o tampo da queijeira,
desfazendo-a e tornando a desfazê-la entre as mãos. Depois de repisada quanto
baste, a massa volta a ser salgada. Chama-se então à operação salga no
repiso.(...) O roupeiro deita uma mão cheia de sal grosso, cerca de 200 g por
cada unidade de queijo grande.
Mexida de novo para se misturar com o sal, a massa
é de novo introduzida nos cinchos que se apertam progressivamente até prender.
Sobre o cincho coloca então o roupeiro a francela para comprimir superiormente
a massa e obrigar ao escorrimento de algum almece residual. A francela é um
disco de madeira relativamente pesado com um diâmetro de uns 25 cm, tendo às
vezes uma pega. À massa assim comprimida dá-se um repouso de cinco minutos.
Confecção – “É agora chegado o momento da
confecção propriamente dita do queijo. O roupeiro retira a francela e com muito
cuidado começa a calcar lentamente a massa com as palmas de ambas as mãos. A
superfície alisada e um tanto endurecida pelo contacto da madeira da francela
favorece a operação, não deixando que superiormente transpareça almece.
A partir de agora
tudo é feito com atenção redobrada, para não diminuir a massa enquanto
se processa o esgotamento final do soro. À medida que vai diminuindo o volume,
vai-se apertando o cincho, para conservar a massa acima do bordo do mesmo. Pode
já falar-se, com propriedade, de queijo.
Nesta operação os queijos são voltados duas ou
três vezes para que a pressão das mãos se faça de ambos os lados, garantindo um
esgotamento mais uniforme. Quando há muitos queijos em preparação ao mesmo
tempo, é preciso andar bem para não deixar esfriar a massa, o que dificultaria
o trabalho.
Terminada esta fase de fabrico, o roupeiro aperta
de novo o cincho para tornar proeminente o queijo acima do bordo e coloca-lhe
de novo a francela. Aguarda depois que o mesmo fique suficientemente enxuto.”
Carão – “Ao fim de tantas voltas o Serpa ainda não
é um queijo definitivo. Falta-lhe fazer o carão, isto é, promover-lhe uma face
suficientemente consistente. Quase uma operação de cosmética! Para tanto, o
roupeiro volta a desfazer a superfície do queijo em ambos os lados, picando-a e
desfazendo-a bem com a ponta dos dedos até uns três ou quatro centímetros de
profundidade. Assim picada e desfeita, essa massa superficial perde mais
depressa humidade, endurecendo mais rapidamente que a restante massa de queijo.
Comprime-a depois o roupeiro com a mão mergulhada em almece, para lhe aumentar
a aderência e dar-lhe mais lisura. Está-se a fabricar a casca do queijo, a
crosta, em linguagem mais erudita.
A primeira fase do fabrico está a chegar ao fim.
Como operação final, o roupeiro coloca de novo a francela sobre o queijo e aí a
deixa até ao próximo fabrico.
Nasce assim entre voltas, exigências e rituais, o
Serpa magnífico. Tiremos-lhe o chapéu, mas desse-lhe o privilégio da cura para
que se apresente com dignidade aos seus apreciadores.
Cura – A cura é uma fase complicada, corolário do
processo complexo da feitura do queijo. O roupeiro tem de pôr à prova dotes
acrescidos, onde prevalece a intuição. Diremos mesmo que nesta fase, depois de
alquimista e mago, é obrigado a tornar-se meteorologista. Como as instalações
são normalmente improvisadas, há que estar muito atento aos problemas de
temperatura e humidade. Sondar o sol, adivinhar os ventos, prever a chuva são
cuidados a não descurar para manter o ambiente ideal na casa de cura.
O roupeiro vai andar numa roda viva! Controla
portas, janelas, frestas, aberturas. Fecha e abre. Rega por vezes o chão para
humedecer o ar. O termómetro e o higrómetro são instrumentos que o roupeiro tem
à flor da pele. Roga pragas ao suão que sopra de Espanha e faz estalar a crosta
do queijo. Solicita por vezes as brisas do sul, que transportam alguma
humidade. Outras vezes deseja que a aragem do norte seque mas refresque o ar.
Há ocasiões em que o vento norte é o inimigo número um!
Repousando no caniço, plataforma feita com canas,
o queijo é nos seus começos um produto sensível, uma criança mimada.
Na fase do amadurecimento atravessa dois momentos
que o artesão queijeiro faz questão de distinguir, destinando, a cada um,
instalações adequadas.”
Enxugo – O primeiro é o enxugo que se processa nos
primeiros dez dias e em que se evapora grande quantidade de humidade. Forma-se
durante este tempo a casca do queijo. Esta deve progressivamente ficar fina e
lisa mas suficientemente rija e elástica para não rebentar. No interior do
queijo iniciam-se as primeiras fermentações. O roupeiro é obrigado a cintar o
queijo com tiras de pano cru para não o deixar expandir em demasia, ocasionando
o rebentamento da casca recém-formada.”
Cura – “Quando o queijo “começa a trabalhar”,
inicia-se o segundo período do seu amadurecimento. O roupeiro muda-o para
instalações mais adequadas, segundo regras de bom senso ditadas pela prática, e
faz figas para que a fermentação aconteça de modo homogéneo em toda a massa.
Mal vai a coisa quando o queijo pára de trabalhar. A esta fase, e só esta,
chamam os roupeiros a fase da cura. Dão-na por concluída de dezoito a vinte
dias após ter terminado o enxugo.”
Entorna –
“Aproximadamente um mês depois de ter deixado a queijeira matriz, o Serpa tem
agora o nome de queijo em toda a acepção da palavra. Voltado todos os dias no
caniço para uniformemente enxugar, atingiu a fase da entorna, amanteigado que
baste, bom para os que gostam de o barrar no pão. Puxado com a faca fica uma
estrada de perfume a derreter-se. O trevo, a erva garfeira, a margaça, o
cezirão, a macela que a ovelha campaniça seleccionou nos pastos do sudeste
alentejano, deixam nessa pasta rescendente aromas sub-reptícios envoltos na
gordura olorosa do leite generoso. O Serpa aí está a desfazer-se na boca. Pela
mão do roupeiro, mas com o selo do pastor alentejano!
Há quem
goste dele mais assentado, isto é, de meia cura. Tem então a casca mais grossa,
a massa mais consistente, o cheiro mais intenso. Mas é curado e bem seco que o
serpa tem mais requinte. É um produto para guardar. Está duro, de sabor
concentrado, capaz de aguentar o verão tórrido do Alentejo.
Guarda – “Costumam metê-lo num asado de barro,
tapado com um prato poroso cheio de água para não perder de todo a humidade.
Não querem que ele chegue a um ponto de dureza em que não lhe entre o gume da
navalha.
Para o mesmo efeito há quem o unte com azeite e há
quem o barre com uma mistura de azeite e colorau. Este último processo deixa o
queijo com uma tonalidade avermelhada que lhe encobre o amarelo torrado da face
em que usa apresentar-se. Não fica, no entanto, desvirtuada a qualidade do
produto e parece que o colorau tem o mérito de afugentar os piores parasitas do
queijo, a mosca e a traça. Há cerca de meio século ainda era esse queijo bem
curado, fabricado em tamanho reduzido que fazia parte das comedorias do pessoal
contratado nas grandes casas de lavoura.”(João Mário Caldeira, Margem Esquerda, As gentes, a terra, os bichos).
Gastronomia do Borrego e Doçaria do Queijo Fresco e do Requeijão
Honro aqui um alentejano da zona de Estremoz,
Mariano Correia, o “Chefe Mariano”, um mestre cozinheiro de alto gabarito, que
na cozinha e doçaria alentejanas é um sábio. As suas “18 Receitas de Borrego”,
editadas em postais ilustrados pela Câmara Municipal de Estremoz, são a prova
da sua valia. Para que constem aqui vão algumas.
Borrego
Iscas de Fígado de Borrego
1Kg de fígado; ½ de batatas; alho q.b.; louro
q.b.; vinho branco q.b.; sal q.b.; um baço de borrego; Banha q.b.; presunto
q.b.
Temperam-se as iscas de fígado com os condimentos
todos. Raspa-se o baço para dentro do fígado. Fritam-se as iscas e
acompanham-se com as batatas meias fritas às rodelas, colocando-se o presunto
por cima das iscas. Servem-se em tachinhos de barro.
Ensopado de Borrego
1Kg de borrego; 1kg de batatas; 2 cebolas; 4
dentes de alho; salsa q.b.; louro q.b.; vinagre q.b.; fatias de pão q.b.;
colorau q.b.
Refoga-se a cebola com a salsa, o alho, o louro e
o colorau, o cravinho e a pimenta, pôe-se o borrego dentro, deixa-se guisar
durante uma hora ou uma hora e meia. Depois de estar guisado, deita-se um
bocadinho de vinagre, guarnece-se com as batatas cozidas no próprio molho e
fatias de pão.
Mãozinhas de Borrego Panadas
12 mãozinhas de borrego; 1 cebola; sal q.b.; salsa
q.b.; 2 dentes de alho; ; água q.b.; 2 ovos; pão ralado q.b.
Cozem-se as mãozinhas e, quando estão cozidas,
tira-se-lhe o osso. Passam-se por ovo e pão ralado e vão a fritar em óleo muito
quente. Acompam-se com limão, laranja e ramos de salsa.
Sarapatel de Borrego
½ Kg de fígado; ½ Kg de bofe; coração q.b.; louro
q.b.; 2 cebolas médias; fatias de pão q.b.; hortelã q.b.
Faz-se um refogado com a cebola, o louro e a salsa
picada. Picam-se as miudezas todas, põem-se a refogar e vai-se deitando um
pouco de água. Quando estão refogadas, tem-se o sangue cozido, esfarela-se para
dentro, tempera-se com os cominhos e a pimenta, deixa-se ferver e rectifica-se
de sal e temperos. Está pronta. Leva sopas de pão e um ramo de hortelã.
Miolos de Borrego
2 mioleiras; 6 ovos; 1 cebola pequena; um pãozinho
pequeno esfarelado; 4 rins de borrego; banha q.b.; sal q.b.
Cozem-se as mioleiras em água e sal, fritam-se os
rins aos bocadinhos, pica-se a cebola que se frita em banha juntamente com os
rins. Batem-se os ovos, pôe-se o miolo do pão, juntam-se a mioleira e os ovos
aos rins e mexe-se tudo muito bem. Está pronto a servir.
Borrego Guisado com Ervilhas
1kg de borrego; 1kg de ervilhas frescas; 2
cebolas; 200 gr de banha; sal q.b.; colorau q.b.; pimenta moída q.b.; água q.b.
Refoga-se o borrego com os temperos todos e,
quando esteja a meio da cozedura, junta-se-lhe as ervilhas. Quando as ervilhas
estiverem cozidas, rectificam-se os temperos e está pronto.
Borrego Assado
1 Kg de Borrego; 2 cebolas; banha q.b.; 6 dentes
de alho; 1 kg de batatas; 1 alface; 1 molho de hortelã; um molho de coentros;
azeite e vinagre para temperar; louro q.b.; salsa q.b.; cravo de cabecinha
q.b.; margarina q.b.; vinho branco.
Tempera-se o borrego com os temperos e o vinho
branco, põe-se num tacho de barro para ir ao forno, juntam-se as batatas
descascadas e põe-se tudo a assar no forno com a banha e a margarina.
Guarnece-se com as batatas assadas e salada de alface cortada miudinha, com
coentros e hortelã.
Mãozinhas de Borrego com
Molho de Tomate
12 mãozinhas de borrego; 2 cebolas; 4 dentes de
alho; louro q.b.; salsa q.b.; sal q.b.; pimenta moída q.b.; polpa de tomate
q.b.; vinho branco q.b.
Cozem-se as mãozinhas de borrego. Depois de
estarem cozidas, tiram-se os ossos. Faz-se um refogado com a cebola e os
temperos todos. Quando a cebola está refogada, junta-se o tomate e deixa-se
refogar muito bem.
Deita-se um pouco de vinho branco e caldo onde as
mãozinhas foram cozidas. Juntam-se as mãozinhas e rectificam-se os temperos.
Acompanha com arroz de manteiga ou triângulos de pão frito.
Cozido de Borrego com Grão,
Feijão Verde e Abóbora
½ Kg de borrego; 250 gr de toucinho; 250 gr de
chouriço; ½ litro de grão; ½ Kg de feijão verde; 1 abóbora pequena; 1 cebola; 2
dentes de alho; 1 colher de sopa de colorau; sal q.b.; banha q.b.; azeite.
Põem-se as carnes a cozer. Depois de estarem
cozidas, coze-se o grão no caldo das carnes. Faz-se um refogado com os
condimentos todos e põem-se o feijão verde e a abóbora a refogar. Quando estão
refogados, junta-se-lhe o grão. Vê-se se estão bem temperados. Serve-se em
prato de barro com as carnes por cima.
Queijo Fresco e
Requeijão
Queijadas
Para a massa: 400 gr de farinha; 130 gr de banha;
sal q.b.; água morna q.b.
Amassa-se tudo junto e estende-se a massa com o
rolo muito fininha. Forram-se formas untadas com manteiga e polvilhadas com
farinha.
Para o recheio: 1,300 Kg de queijo fresco sem sal;
22 gemas de ovos; três ovos inteiros; 200 gr de manteiga; 1,200 Kg de açúcar;
130 gr de farinha; raspa de limão; 1 colher de chá de canela moída.
Põem-se os queijos dentro de um alguidar,
juntam-se as gemas, os ovos, o açúcar e a raspa de limão, e bate-se tudo muito
bem com a varinha mágica. Passa-se a farinha por um passador e junta-se à mesa.
Por fim, junta-se a manteiga derretida. Enchem-se formas forradas com a massa e
vão ao forno a cozer.
Bolo de Requeijão
600 gr de requeijão; 600 gr de açúcar; 12 ovos;
200 gr de farinha; raspa de um limão; 1 colher de chá de canela moída.
Batem-se as gemas com o açúcar, o requeijão, a
casca ralada do limão, as claras em castelo e a farinha. Envolve-se tudo,
unta-se uma forma com banha. Polvilha-se com farinha e deita-se a massa dentro.
Vai a cozer em forno moderado.
Para completar a gastronomia do borrego
aqui vão dois textos que publiquei no livro Terras de Grandes Barrigas, Onde
Só Há Gente Gorda .
O primeiro intitulei-o O Cheiro da Esteva: Entravam
na vila puxados pela arreata que o burcalheiro segurava com manha de guia.
Carregadinhos de lenha de estevas, os burros do Ti Manel Pinheiro chegavam à
rua de Montoito suando as estopinhas. A lenha amanhada em montão, crescendo do
chão de calçada pela parede branca acima, esperava de noite o destino que a
madrugada guardava – ser lume e calor para aquecer o forno do Tio João Sapinho.
Nas noites frescas de Abril a lenha
servia-nos de esconderijo para as nossas fantasias de guerras e, enquanto
esperava, o cheiro da resina entranhava-se-me no nariz ranhoso bebendo-o sem
querer em inspirações profundas.
O bom cheiro da esteva queimada era um sinal nas
manhãs de sábado quando o fumo subia nos ares anunciando o pão fresco da
fornada. Minha avó, que tinha preparado a perna de borrego – muita banha, muita
salsa, sal, colorau, batatas, cebolas, alhos e uma pinga de vinho branco -,
mandava-me levar o tacho de barro tapado com um pano de cozinha, para que o
forno ainda quente fizesse o milagre do assado. Por fora, a giz, levava o nome
gravado – Filomena -, para que, à tarde, quando fosse buscá-lo não houvesse
enganos. No caminho para casa, o tacho ainda quente, de vez em quando, às
escondidas, assentava-o no chão, puxava do bolso umas sopas, molhava-as no
caldo e lambia-me todo, porque na carne assadinha, apetitosa, não podia tocar
com um dedo, senão a velha Flomenga dava logo por isso. Chegava do recado e ela
ainda me dava o convite. Sabem lá vocês o encanto que esse tempo tinha!
O outro chamei-lhe O melhor manjar: Tempo
de Páscoa e o borrego em minha casa era rei e senhor. Meu pai saía de manhã
cedo no sábado de Aleluia e pelos cantos da vila só já se viam montes de peles
sujas de sangue, que os peleiros compravam por tuta e meia a quem passava com
elas para venda. Eu ia com ele, como quase sempre acontecia nestas situações de
ver e viver a vida, como ele dizia.
Encaminhávamo-nos pela Rua do Jardim abaixo,
passado o Largo dos Correios, e o mercado ficava ao fundo onde, nesse dia, se
vendiam os borregos novos para as delícias do fim da Quaresma. Meu avô já lá
estava no posto dele, curtindo os vapores da aguardente na baiuca do Tio Marquês, e depois de meu pai acertar o
preço do bicho com o vendedor, o velho Cera, pegava nele às costas, levava-o
até minha casa e no quintal é que fazia a trasfega de o matar, esfolar, e
partir com sabedoria de mestre – pernas e mãos para o assado, fígados para
iscas, cabeças para assar no forno, costeletas para fazer em molho de bife,
vísceras e sangue para fressura, tudo aproveitadinho como mandava a lei do
pobre, rico por dias com a fartura destes bichos cuja carne era a mais saborosa
e saudável que se comia na planície transtagana.
Falei em ensopado e tenho que descrever-vos este prato especial, o
melhor manjar que minha avó e minha mãe faziam, porque nunca o comi em lado
algum com elas o confeccionavam. Pois é assim. Já sabemos que as partes menos
nobres do borrego é que vão para o tacho. Depois de feito o refogado de alhos,
cebolas e louro, em azeite ou banha, a carne vai a cozer um pouco para tomar
gosto, juntamente com algum sal, cravo de cabecinha e pimenta preta. Mete-se
água em abundância e deixa-se ferver até a carne ficar meio cozida. Seguidamente,
no meio da fervura, junta-se massa de tomate e no fim batatas aos quartos que
cozem em lume brando.
Este ensopado comíamo-lo no Domingo de Páscoa ao
almoço, com sopas de pão e salada de alface, naquela velha sala de jantar que
tinha janela para a cozinha e por onde passavam os comeres e os beberes para o
aconchego da família, que nesse dia era muita lá em casa. Domingo de Festa era
um dia grande de alegria que se prolongava na tarde de Segunda-Feira, quando o
Redondo inteiro ia para a Boa-Vista, para a Ribeira do Calado ou para a
Piedade, para as famílias gozarem os prazeres da Primavera renascente, os
sabores do assado de borrego, os delírios orgíacos do vinho tinto, quiçá os
eflúvios do amor escondido em cama de ervas deitadas, atrás de arbustos
viçosos, altaneiros.
Editado por:
Almoço cultural
“O Ciclo do Borrego”
8 de Abril de 2006
Moinho do Alcaide
Herdade das Mestras
de Baixo
ÉVORA
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