sexta-feira, 14 de março de 2014

A PESCA DE RIO – MOLEIROS, PESCADORES FURTIVOS E CONTRABANDISTAS

(Ensaio etnográfico sobre a pesca de rio no Alentejo)



J.M.Monarca Pinheiro


Na História, Pescadores da Vida

 A pesca de rio foi uma das primeiras actividades do homem primitivo para assegurar a sua subsistência. No paleolítico superior já se usavam arpões e anzóis. No neolítico os habitantes das palafitas já utilizavam redes de pesca. Tridentes e covos de vimes completavam o seu equipamento.

A pesca foi corrente entre os egípcios devido à abundância de peixe no rio Nilo e entre os Hebreus no rio Jordão e no Lago Tiberíades.

O Evangelho de S. Mateus refere que S.Pedro pescou à linha, no lago Tiberíades, um peixe que valia duas dracmas. Em Isaías (XIX, 8) fala-se dos pescadores que pescavam com linha no Nilo. A nassa ou o covo, e o arpão eram utilizados pelos pescadores egípcios. As redes de diferentes espécies já eram utilizadas pelos Hebreus no tempo de Salomão (Eclesiastes IX,12). Os apóstolos pescaram com redes no lago Tiberíades. No Evangelho de S. Mateus, IV, 18; XIII, 47; S. Lucas V, 4; S. João, XXI, 6, fala-se da pesca que os apóstolos exerciam com as suas barcas e redes no lago Tiberíades.

São várias as referências a pescas milagrosas nos Evangelhos. Jesus Cristo mandava lançar as redes e os apóstolos faziam grandes pescarias (S. João XXVI, 6-11).

Os Gregos e os Romanos foram apaixonados pescadores, Homero e Plínio o atestam.

Opiano, nas suas Haliêutas, no séc. II a.C. dedicou um tratado em língua grega à arte da pesca.
A pesca com anzol ou pesca à linha, mencionada por Platão, praticava-se, como actualmente, por meio de um cana de pesca, que se compunha geralmente de um junco e de um fio de linho ou de uma crina, à qual se atava um flutuador de cortiça, um pedaço de chumbo e finalmente o anzol. Preparavam o isco para ao peixes pequenos com vermes ou insectos, e, para os grandes, faziam-no de peixitos. Empregavam-se também, como hoje, iscos artificiais, tais como moscas fabricadas com fios de lã vermelha. O processo da linha de fundo, sem cana de pesca, era também já utilizado.
A armadilha é uma espécie de cesto de vime, que tanto podia ser largo e arredondado como de forma alongada e bicuda; o princípio era o mesmo de hoje; hastes aceradas impediam os peixes que tivessem entrado de tronarem a sair.
As redes de pesca, tal como as de caça, são de tipos muito variados. As principais eram, como hoje, a tarrafa, rede em forma de funil munida de chumbos, que se atira, estendendo-a sobre a água e fechando-a... (Robert Flacière, A Vida Quotidiana dos Gregos no séc. de Péricles).

Na Idade Média, em Évora, há uma postura municipal que refere a venda de peixe do rio: (...) que os peixeiros do rio vendam o arratel do pescado do rio a 10  soldos e se o desfezer que lhe dêem 20 soldos e uma assadura o do freame 1o soldos por o adubar de todo ... (Gabriel Pereira, Documentos Históricos da Cidade de Évora).

No Portugal medieval pescava-se, sobretudo, nas águas interiores e os principais utensílios de pesca eram a rede, a nassa e o anzol, e no Alentejo também, embora outros apetrechos completassem o rol.

 Alentejanos ribeirinhos – a lei da sobrevivência


Em cada concelho alentejano há uma ou mais ribeiras, mas poucos concelhos têm um rio principal. Se quase todos eles, subafluentes (ribeiras), afluentes (rios secundários) e rios principais correm no Outono e no Inverno, devido às chuvas que caem (tendo em conta a pluviosidade dos anos), quando acaba a Primavera e o Verão assola os campos com os seus calores tórridos, o que fica, com excepção do Guadiana, do Sado e do Mira, são os pegos onde a fauna aquática sobrevive, e mesmo naqueles três rios, em anos extremos, só nos açudes a vida se mantém.

Foi nestas ribeiras e rios que desde tempos imemoriais os alentejanos ribeirinhos aprenderam também a lei da sobrevivência e, devido à abundância de peixes nalguns deles, ali tinham uma fonte de alimentos importante, à custa da utilização de artes de pesca que ainda hoje perduram, artes de pesca cujas licenças só eram passadas a profissionais, embora fossem muito utilizadas por pescadores furtivos, moleiros, e contrabandistas, ilegalmente.

É sobre a vida dos peixes, artes de pesca, pescadores e gastronomia do peixe do rio, referentes ao séc. XX, que este texto incide, bem como sobre algumas situações características relacionadas com vivências humanas que, em particular, o grande rio do sul, o Guadiana, proporcionava. 

Os Peixes


Tendo como referência o Rio Guadiana, segundo Francisco Dias da Costa a sua fauna piscícola é a seguinte:

Ciprinídeos


Barbo-Ibérico (ou Cumba) = Barbus comiza (Steindachner)
Carpa = Cyprinus carpio L.
Barrigão ou Carpa-de-Escama = é uma variedade da anterior
Pardelha = Rutilus Leminggi (Steindachner)
Peixe-encarnado; Pardelha-encarnada = Rutilus arcasii (Steindachner)
Bordalo = Rutilus macrolepidotus (Steindachner)
Boga-do Rio = Chondrostoma polylepis (Steindachner)
Gambúsia = Gambúsia affinis (Bayrd & Girard)

Lochas


Verdemã = Cobitis taenia L.(ou Cobitis paludica = maroccana)

Esocídeos


Lúcio = Esox lucuius L.

Clupeídios


Sável = Alosa alosa L.
Saboga ou Savelha = Alosa fallax (Lacépède)

 

Percídeos


Perca-americana (Black bass); Achegã = Micropterus salmoides (Lacépède)
Perca = Micropterus salmoides (Lacépède)
Peixe-Sol (ou Perca-sol) =Lepomis gibbosus L.

Mugilídeos


Muge; Mugem; Taínha = Mugil chelo (Cuvier)
Liça, Mugem ou Taínha-dourada = Liza aurata (Risso)
Muge-cabeçudo; Tagana = Mugil cephalus L.
Calhota = Liza ramada (Risso)

Angulídeos


Enguia; Eiró = Anguilla anguilla L.

Petromizontídeos


Lampreia-do-Mar = Petromizon marinus L. (Francisco Dias da Costa, Maravilhoso Guadiana).

O glossário da publicação da EDIA (Empresa de Desenvolvimento e Infraestruturas do Alqueva, SA), Guadiana Alqueva – Tesouros da Vida Natural, com texto de Rui Guita, acrescenta mais alguns: Boga-de-boca-arqueada (Chondostoma lemmingi), Caboz (Salaria fluviatilis = Blennius), Chanchito (Cichlasoma fasciatum), Escalo do Sul (Leusciscus pyrenaicus), Esturjão ou solho (Acipenser sturio), Saramugo (Anaecypris hispanica), Pimpão, Carassius auratus), Boga-do-Guadiana (Chondrostoma willkommii). 

 

Também na publicação Guadiana Alqueva – Os Peixes do Guadiana, se podem encontrar algumas informações úteis para uma melhor compreensão da fauna piscícola deste rio:

 

 Basicamente podemos dividir os peixes, quanto ao seu carácter ecológico, em três grandes grupos:


Peixes Dulciaquícolas (Residentes) – são os que completam todo o seu ciclo de vida nas águas doces, pelo que, ainda que podendo efectuar deslocações ao longo da bacia hidrográfica, não podem ser considerados migradores. No Guadiana pertenece a este tipo a maioria das espécies, como o saramugo, o bordalo, as bogas, o escalo-do-sul, os barbos e o cumba, todos eles pertencentes à grande família dos Ciprinídeos e ainda a verdemã e o caboz-de-água-doce, que pertencem a outras famílias.

 

Peixes Migradores Anódromos – são os que sobem o rio a contracorrente, vindo do mar para desovarem nos pequenos cursos de água. Bons exemplos no Guadiana são o sável e a savelha, se bem que esta última se fique pela parte terminal do rio, mais junto ao estuaário.
Historicamente estas espécies têm de lidar com esse obstáculo natural que é o Pulo-do-lobo, que só conseguem passar em anos de muita cheia.

Peixes Migradores Catádromos – ao contrário dos anteriores, vivem enquanto adultos nos rios, indo-se reproduzir ao mar. Espécie típica, a enguia sai para o Oceano Atlântico, indo reproduzir-se no Mar dos Sargaços. As larvas ao eclodirem são arrastadas pelas correntes até às costas da Europa, onde chegam como meixão. Estes animais imaturos sobem então os rios até atingirem os troços onde se dará o crescimento das jovens enguias. A fortíssima e desregrada pressão de captura que actualmente se exerce no Guadiana e noutros rios sobre o meixão constitui talvez a mais séria ameaça que esta espécie enfrenta actualmente.

Para além destes peixes autóctenes a ictiofauna do Guadiana tem sido desde há muito aumentada pela introdução pelo homem de espécies exóticas. Assim, ocorrem actualmente no Guadiana português três espécies euroasiáticas (o pimpão, a carpa e o lúcio), três espécies norte-americanas (o achigã, a gambúsia e a perca sol) e uma sul-americana (o chanchito).

Algumas destas espécies, por serem predadores vorazes de outros peixes têm vindo a desequilibrar as comunidades piscícolas autóctenes, onde praticamente não há peixes predadores de origem, pelo que as espécies não estão adaptadas a este tipo de pressão que se pode tornar extremamente gravosa, como é o caso da perca-sol nalguns rios e albufeiras do Sul.
Por outro lado, a competição das exóticas com as espécies locais pode também levar à diminuicão em número dos peixes característicos dos nossos cursos de água.
Os rios ibéricos, de uma forma geral, são muito ricos em espécies piscícolas endémicas (que existem apenas na região de onde é originária), uma vez que o maciço dos Pirinéus constitui uma barreira intransponível para estes organismos aquáticos, que não permite a junção da ictiofauna da Península com a do resto da Europa.
Desta forma, ao longo de milhões de anos, os peixes dos rios ibéricos evoluíram sozinhos, sem hipótese de se cruzarem com as espécies tipicamente europeias, originando assim uma fauna rica e diversificada, recheada de espécies que não podemos encontrar em qualquer outro ponto do Globo.

Um fenómeno idêntico, embora a uma escala diferente, ocorre com o isolamento entre as diferentes bacias hidrográficas, que, também elas, albergam por vezes espécies próprias apenas de uma dada bacia.

A bacia do Guadiana, por apresentar grande número de endemismos, é aquela que é considerada mais importante do ponto de vista da conservação da ictiofauna em Portugal. De facto o Guadiana apresenta cerca de 30 espécies de peixes ao longo da sua bacia (não contando com espécies marítimas que ocorrem no estuário), 8 das quais exóticas (introduzidas pelo homem) e 14 das nativas com um qualquer estatuto de conservação (João Fernando Almeida, Guadiana Alqueva – Os Peixes do Guadiana).

 

 

 

Os Açudes


Depois da descrição de cada uma das artes de pesca de rio, caracterizemos uma construção de rio que muito ajudou moleiros e pescadores nas suas fainas: o açude.

A bacia portuguesa do Guadiana desfruta de um clima inclemente, marcado por extremos de temperatura e precipitação. No inverno a chuva cai normalmente concentrada e com muita irregularidade, provocando cheias ou deixando os colectores a seco durante longos períodos. Durante o Verão a pouca água acumulada nos pegos e açudes infiltra-se e evapora-se deixando os leitos à vista, secos e facilmente transponíveis. Isto é sempre verdade para os afluentes e é-o frequentemente para o próprio Guadiana, mesmo depois das muitas barragens construídas nesta metade do século (XX) lhe terem regularizado um pouco o caudal. Estas condições ambientais condicionam o modo de vida local e tiveram um papel importante na criação dos aproveitamentos hídricos.
O elemento fulcral de cada um destes aproveitamentos é o açude. Elevando o nível da água a montante ele cria uma albufeira que aumenta a capacidade do ecossistema ribeirinho e disponibilidade local dos recursos aquáticos. Estas albufeiras são de dimensões reduzidas quando comparadas com a escala das obras actuais mas mesmo assim ocupam áreas razoáveis, entre 5000 a 40000 m2, e retêm quantidades aproximadamente equivalentes em metros cúbicos de água, dependendo da altura do açude e do assoreamento do regolfo. Se tivermos em conta que nas épocas de estiagem a única outra fonte de água disponível reside no subsolo e que nesta região quase todos os terrenos ficam abaixo dos 50 m3 de produção hídrica diária por quilómetro quadrado, então facilmente se percebe que a água superficial assim armazenada é um recurso circunstancialmente importante.
Os escalões de aproveitamento hídrico situam-se nos locais do rio que a morfologia do território e o padrão de povoamento transformaram em lugares privilegiados para usufruto das potencialidades oferecidas pelo meio ribeirinho. Consistem, quase todos, num local de fácil atravessamento do rio, um vau, no qual foram sucessivamente efectuados trabalhos conducentes a um mais fácil e eficiente aproveitamento dos recursos aquáticos.
As obras de melhoramento consistem invariavelmente num muro de retenção de água, com alguns ou quase todos os dispositivos disponíveis para melhor controlo e aproveitamento do caudal, na regularização dos acessos e passagens com pontes, calçadas e alpondras, num ou mais edifícios para aproveitamento da energia hídrica, quase sempre para moagem, e num conjunto de construções para habitação e desafogo dos antigos moleiros, barqueiros e demais habitantes do local. É raro não haver um forno para cozer pão e quase sempre há pocilgas, galinheiros e cercas, um poço ou fonte, hortas, etc. Em muitos destes locais são também visíveis armadilhas e locais de pescas fixos, os caneiros e as pesqueiras.
A infra-estrutura típica de cada um destes aproveitamentos é uma barragem de pequena altura, o açude, com um a três metros de desnível entre os dois planos de água, a montante e a jusante, construído quase sempre em pedra sem aglomerante, num aparelho construtivo peculiar que se denomina gravitacional porque usa apenas o peso do material e a forma como está imbrincado para garantir a estabilidade da construção. Alguns açudes, poucos, foram construídos exclusivamente em argamassa de cal e pedra e num número maior de casos encontramos os dois tipos de técnica construtiva misturados na construção do mesmo açude, predominando quase sempre a primeira. 
Existem dois factos importantes para o conhecimento da história da construção de açudes nos leitos da bacia. O primeiro tem a ver com a importância que os cursos de água, principalmente o Guadiana, tiveram na atracção de populações e na organização do seu povoamento desde a mais arcaica antiguidade. Os recursos ribeirinhos nas suas três facetas, água, alimento e materiais, e o próprio meio aquático na sua capacidade de facilitar ou vedar o acesso, consoante existe ou não capacidade para o transpor, foram sempre decisivos para os habitantes locais e, mesmo hoje, continuam a ser importantes.
O segundo, que parece decorrer do primeiro, é o facto da tecnologia mais usada para a construção dos açudes do Guadiana ser um aparelho de pedra sem aglutinante e com elevada estabilidade nas condições locais, desde que correctamente construído e reparado quando necessário. Estas construções revelam quase sempre uma grande mestria na utilização do material, todo ele lajes e blocos de xisto ou outras pedras disponíveis no local, e conhecimentos profundos sobre o comportamento da água.
O açude pode ter as mais variadas plantas, perfis e secções mas o processo de construção, segredo da sua estabilidade, é sempre idêntico: o mestre-de-obras escorou firmemente as fundações de jusante do açude nas rochas e reentrâncias rochosas do leito, para que suportasse a pressão da água sem abalar rio abaixo, e foi instalando de ambos os lados, as lajes de pedra, imbrincando-as e entalando-as umas nas outras com o eixo mais longo perpendicular à corrente e a parte mais espessa para fora. À medida que as paredes laterais se elevam e curvam para o interior este espaço é igualmente preenchido com pedra, num aparelho por vezes menos cuidado, até ser atingida a altura pretendida para o açude. A parte superior é fechada com as lajes mais adequadas, maiores e mais regulares, porque é aquela que vai estar sujeita a maior desgaste por pressão e arrombamento. O trabalho prossegue desta forma ao longo de toda a largura do leito. Se ficar bem feito e o volume da obra for adequado o açude tem uma duração indeterminada, podendo servir durante séculos apenas com reparações ocasionais. O seu pior inimigo será, nesse caso, a vegetação invasora de tamujas e loendros.
É este tipo de obra que caracteriza a maior parte de açudes, levadas, passadeiras e portos de calçada que encontramos um pouco por todo o lado na região. As razões da generalização são óbvias: é eficiente, barato e resistente. Como processo construtivo é difícil conceber algo de melhor (Guadiana Alqueva – Os Moinhos do Guadiana, texto de Rui Guita). 

As Artes de Pesca


Caneiro – Caniçada para pesca, armada na vertical nos açudes, no tempo de cheias e grandes correntias, por onde o peixe segue ao procurar subir o rio e encontrando aí livre a passagem e que, postos em movimento pela água corrente, apanham peixe sem intervenção pessoal, deitando-o numa celha que o conduz a um tanque ou depósito fechado. Segundo Rui Guita, O caneiro, que é assim chamado por ser construído em materiais vegetais, muitas vezes canas e loendros, ou por ser um canal (as palavras têm a mesma origem), apenas tem de ser vigiado de quando em vez com o olhar. Caso algum peixe tenha caído na esparrela o pescador descansado vai de barco ou a pé, se puder, até à armadilha e retira o pescado. (...) Este tipo de pesca também foi praticado nas ribeiras mas com engenhos portáteis. Por vezes o nosso pescador não chega sequer a fazer ou a aproveitar um verdadeiro açude mas apenas amontoa algumas pedras na corrente para assim obrigar os peixes a entrar no seu modesto caneiro de verdadeiro caniço, leve, transportável, facilmente produzido e perecível.

Nassa – Espécie de cesto comprido cilindríco ou ovolóide feito de vimes ou arames, com uma entrada em cone interno de pontas com bicos afiados. Depois de engodado e colocado na água em pequena garganta, disfarçado com ervas, os peixes são levados a entrar, mas os bicos afiados á não lhe permitem sair. Tem um fundo que abre em forma de tampa por onde se tiram os peixes (também os havia com duas entradas idênticas).

Galricho ou Galrito – Rede para pescar peixe miúdo.

Tresmalho (de três malhas) – Rede de três panos para pescar que se coloca nos estreitos dos rios com águas correntes, presa nas margens através de estacas ou pedras. Era colocada de noite para fugir à vigilância da Guarda e batia-se a água com paus ou pedras para que os peixes fugissem e ficassem presos nas malhas. Também se usava engodar uma garganta do rio de modo a que os peixes se concentrassem num local. A rede era colocada na parte mais larga da garganta, batia-se a água e os peixes ao fugir ficavam presos na rede.

Tarrafa – Rede (que pode ser contramalhada, dupla ou simples) de forma cónica, cuja base circular, quando aberta, tem cerca de três metros de diâmetro, com chumbadas a toda a circunferência (antigamente metiam-se pequenos sacos de areia ou pedras), e que é lançada a partir de corda presa ao centro, através de voltas que o pescador lhe dá com a mão e braço ao lado ou acima da sua cabeça, duma chata (barco), da margem ou de dentro do rio ou ribeira, abrindo-se no ar e caindo em pleno círculo na água. Devido ao peso das chumbadas a rede fecha-se apanhando os peixes que estiverem naquele local do rio.

Corda – Corda comprida segura em ambas margens do rio, na qual são presos fios com centenas de anzóis iscados com minhocas. Embora servindo para apanhar diferentes peixes era mais aplicada na pesa às enguias.

À Lapa – Pesca feita nos açudes ou nas margens rochosas dos rios e que consta da técnica de meter as mãos nas lapas (buracos entre as pedras) onde os pequenos peixes se escondem e, pela palpação com cuidado, descobrir os peixes enlapados, agarrá-los e traze-los sem os largar.

Cana de Pesca – Cana-da-índia (ou um vime, ou uma cana, ou um pau) com linha, anzol iscado na ponta, uma bóia de cortiça, e entre a bóia de cortiça e o anzol, uma chumbada.

Linha de Fundo – Linha com anzol iscado e uma chumbada. Apetrecho que é deixado nos fundos dos leitos dos rios para pesca aos peixes de fundo.

Nassa de Saca – Saca de serapilheira que é colocada nos baixios dos açudes com a boca aberta de modo a apanhar os peixes que sobem a corrente.

Raízes das Rabaças (nome vulgar do Apium nodiflorum) – Planta muito vulgar nas águas correntes ou estagnadas, antigamente considerada anti-escorbútica; a rabaça, cuja raíz é tóxica, emprega-se, como o trovisco, para matar o peixe dos rios e das ribeiras.

Vejamos, sobre as artes de pesca de rio, um texto de F. Dias da Costa referente ao Guadiana: Passada a zona navegável, os barcos usados ao longo do rio são pequenas e toscas chatas, de fabrico artesanal, com esqueleto de azinho ou sobro, simples e pesados. São os barcos deixados pelos moleiros. Nesta actividade (a pesca) usam diversas técnicas e aparelhos, conforme as águas do rio onde trabalham: desde a corda que sustenta dezenas e centenas de anzóis, até ao caneiro, passando pela tarrafa, o tresmalho (...), e a nassa. O caneiro é uma forma de pesca de alto rendimento e torna abastada a família que o explora. São raros os caneiros. Conhecemos um destes dispositivos em funcionamento no concelho de Mértola cujo proprietário, durante os meses das águas, vende largos milhares de quilos de pescado onde cabem, passando pelos barbos e outras espécies, a lampreia e o sável (F.D. da Costa, Maravilhoso Guadiana).

 

Barcos do Rio – As Chatas


Estas pequenas e toscas chatas de fabrico artesanal, os barcos do Guadiana, mereceram um estudo de Jorge Cruz e Orlando Sousa que eles resumem nas seguintes palavras: Numa extensão que podemos balizar entre Cheles, em Espanha, até Moura, existe um tipo característico de barco, que chamaremos de barco de tábuas do Guadiana. Feito em madeira, é hoje apenas usado por pescadores, mas possui características que indiciam ter tido bastante importância na circulação de pessoas, bens, e naturalmente, de ideias. (...) O conhecimento sobre as técnicas de construção, sobre os materiais utilizados e sobre o seu uso, passaram empiricamente de geração em geração... (Jorge Cruz e Orlando Sousa, Alqueva, Centro do Mundo? – Actas da 8ª Edição dos Encontros de Monsaraz)

Pescadores do Rio


O texto de João Mário Caldeira, Pescar a esperança que corre, é rico de conteúdo relativamente à pesca com tarrafa: (...) a fauna piscícola continua abundante. Daí que haja gente que ainda vive da pesca fluvial. Barbos, pardelhas, bogas, bordalos, enguias, carpas e tencas (tainha dos rios) constituem a população aquática autóctene, a par do importado achigã. O grande obstáculo do Pulo do Lobo impede que espécies mais nobres apareçam a montante. A lampreia ainda se aventurou até Serpa aquando das grandes cheias de meados do século(XX), aproveitando a subida do caudal do rio. O sável nem isso.
António Ologário Valadas, homem robusto que ainda não ultrapassou o meio século de vida, é profissional experimentado na arte milenar de capturar peixe do rio. Filho de moleiro e pescadores naturais de Pedrógão, nasceu e foi criado junto ao Guadiana, no moinho da Canada, à vista da estrada que liga Serpa e Beja.
Afirma conhecer o rio, desde a “passagem da barca”, próximo de Moura, até à foz. Pesca habitualmente na zona de Serpa, embora não desdenhe afastar-se até ao termo de Mértola. Para tanto, transporta o barco por estrada a reboque da sua velha utilitária Peugeot, que utiliza também para venda do peixe em terras circunvizinhas.
Como contas de rosário enumera a corda de moinhos de corrente que de montante a jusante se estendem ao longo do Guadiana no troço que habitualmente frequenta. Desde o da Barca até ao de Bugalhos enumera mais de vinte sem a menor hesitação, dissertando sobre a difícil profissão de moleiro com uma desenvoltura surpreendente. Nenhuns dos passos do ofício complicado da moagem de corrente lhe esqueceram depois de os ter visto ao pai e de ele próprio os ter desempenhado. A deslocação e afinação de peças tão pesadas como as mós, a regulação da entrada da água no sistema e muitas outras tem António Ologário presente na sua privilegiada memória de homem rústico.
O rio é para ele o seu mundo. O barco a sua mobilidade. A pesca o modo de vida. Sua memória um poço de saudade.
Quem quiser observar a sua habilidade de pescador desloque-se aos Moinhos Velhos, próximo de Brinches, local onde a natureza e os homens dividiram o rio em múltiplas correntes para que as cinco azenhas, hoje paradas, moessem trigo noite e dia.
Na pesca, os gestos do Ologário são exactos, apropriados. Os necessários para quem domina a arte na perfeição. Fruto de prolongada repetição, tudo lhe sai adequado e rápido, aparentemente fácil. Com agilidade sobe para o barco, ajeitando-o para a entrada de Manuela, sua companheira na vida e na pesca.
Dada a falta de mestres que construam barcos em madeira como é da tradição, ologário encomendou o seu a um serralheiro de Brinches que o fez em chapa de ferro, seguindo o modelo dos antigos. São barcos sem quilha, chatos, de popa e proa perfeitamente iguais, com implantação dos remos a meio da embarcação. O seu comprimento pouco passará dos três metros de modo a facilitar o trajecto pelos apertados meandros do rio. O estritamente necessário para pôr as pessoas a flutuar e levar as artes de pesca.
Enquanto o marido ajeita a rede, Manuela manobra com os remos a casca de noz, seguindo o rumo dado pelo companheiro através de gestos. O barquinho dirige-se para uma das várias correntes que antigamente fizeram mover os rodízios e as mós das azenhas. Ao parar, o pescador lança no ar, presa no braço esquerdo, uma enorme sombrinha de rede, a atarrafa, que impelida pelos pesos rapidamente mergulha na água deixando à superfície os sulcos da sua forma circular. A seguir ao clash das chumbadas na água faz-se um breve silêncio...
   
A um sinal, Manuela faz progredir um quase nada a embarcação de modo a facilitar as operações do companheiro, que lentamente vai recolhendo o engenho com adequado conjunto de gestos... à luz do sol começam a reluzir as escamas verde-acastanhadas dos barbos que se deixaram prender nas malhas traiçoeiras da armadilha.
Retirados os peixes, outros lances se efectivam. A grande calota de rede com um diâmetro de três metros é lançada de novo no ar, ganhando com a perícia de Ologário a graciosidade de uma saia de tule. De lance em lance, muitos barbos são retirados do rio e vêm chapejar na água que entretanto cobre o fundo do barco.
O grande rio do Sul, chamado noutros tempos no feminino “a Guadiana” como uma pequena “mãezinha Volga”, vai ainda oferecendo com generosidade envergonhada o peixe das suas águas!
A pesca protagonizada por António e Manuela tem o sabor de uma fotografia antiga tirada de um álbum de recordações. A sua beleza, o equilíbrio da cena no contexto envolvente, reproduz o quadro de um tempo que já foi. Um tempo marcado pelo ritmo sazonal da economia, dos pequenos proprietários da terra, dos seareiros. Uma economia rural que fazia moer moinhos, que dava trabalho a pastores, ganhões e artesãos de todos os ofícios, mantidos com peixe do rio (João Mário Caldeira, Margem Esquerda do Guadiana, As gentes, a terra, os bichos).

Em dois textos de minha autoria, um, fruto de uma pequena reportagem, outro, produto da minha memória de infância, ambos publicados no Jornal Terras do Cante em 1995, podemos verificar outras experiências de moleiros e pesca de rio, neste caso com a tarrafa e o tresmalho:

Eis o primeiro: Toda a ciência do rio - O Mestre Venâncio é um homem  com oitenta e cinco anos - o que não é brincadeira - e nasceu num moinho do Guadiana, ou não fossem já os seus pais moleiros e ele não gastasse a vida no rio.
(...) Vê-se-lhe nos olhos, dizia, o cantar do rio correndo debaixo da azenha, nas mãos, a música das mós moendo, e é fácil imaginá-lo enfarinhado enchendo a sacaria.
Com o pãozinho fazíamos aquelas caldeiradas com peixes, que aquilo tínhamos ali a colhêta em casa, eles andavam até debaxo da gente. Os moinhos a moer e a gente a vê-los passar.
Era moleiro mas também era pescador.
Tinha um barco - ainda lá está à sombra dum salgueiro - e com a tarrafa e os tresmalhos, remando duma margem p’rá outra, aquilo vinham bogas, bordalos, barbos, carpas. Ainda vendi algum pêxe, mas era mais p’rá família. Às vezes na margem do rio fazíamos um sombracho com ramadas de freixo, com buinho, e aquilo fazia-se ali uma sombra boa e ali é que era até desmaginar. Às vezes tínhamos um garrafão ao lado, ainda não tínhamos acabado aquele já estava a chegar outro. Em tempos não o acabava, andava pensando qu’o acabava e não o acabava - cheguei-lhe bem. Os tais maquilões vinham p’ra provarem a caldêta de pêxe. Juntavam-se dois: vamos embora, temos que levar um garrafão... . Muitos levavam até as mulheres. Ê mesmo depois que casei tive-a lá sempre.

Eis o segundo: “A pesca no Guadiana”.  Até lá era uma estafa de bicicleta a pedais, quando não de burro ou a pé.  Os homens partiam ao anoitecer por causa da Guarda - turjia à costas, mal amparados, com o fito no Guadiana.  Escolhiam Agosto, estes malteses do rio, conhecedores de pegos e vaus e de onde o peixe dormia; no verão era mais fácil meter o corpo à água para esconder as nassas ou atravessar de barco na corrente fraca para estender os tresmalhos ou lançar a tarrafa.  Estendidos ao relento em cima dumas mantas velhas, depois da bucha comida e da beata lhes apagar o vício, davam dois dedos de conversa e adormeciam. De madrugada, coração aos pulos, lá iam p'rá empreitada. Era lua nova e o escuro de breu ocultava os maneios leves dos pescadores. O tio Garcia estendia o tresmalho de quinze metros, enquanto o Sete e Picos segurava a corda. Preso às margens com duas pedras grandes, tudo feito com o cuidado do silêncio, era a hora de bater a água com paus e pedras para que o peixe fugisse p'rá "mãe" de encontro às redes armadas. Quando eles saltavam era sinal de boa pescaria, e a pressa tinha que ser muita porque as carpas dão saltos de morte e a Guarda podia estar à espreita.

Recolhida a rede, os olhos luziam-lhes de alegria: carpas de dois e três quilos, barbos de um e dois, eram aos montes.
Em lances rápidos, certeiros, porque o peixe ali era muito e gordo, faziam rodopiar as tarrafas por cima da cabeça, e era vê-las cair na água fechando o círculo para o fundo com o peso das chumbadas. Bonita visão aquela - a das redes redondas, molhadas, brilhando com os primeiros raios de sol da matina.
Recolhidas as nassas de vime escuro e alguns barbos gulosos que entraram mas não saíram por causa dos bicos afiados, mal o dia nascia, sacos de serapilheira cheios, escolhiam os caminhos a olho, veredas por entre o mato que só eles sabiam, porque o pior era entrar na vila sem ninguém dar por isso e ir vender o peixe às tabernas ou aos vizinhos, guardando algum para o jantarinho da família e para a petisqueira com os amigos.
Fritinhos ou de caldêta, os mais pequenos; retalhados à navalha, ao milímetro, para assar no forno com batatas, os maiores, era como morriam os sacanas nos buchos dos compinchas, regados a tinto carrascão para amansar o pelo aos fortalhões e afinar as gargantas aos fadistas, porque a petisqueira metia sempre fado e guitarradas, com o Cardinal na dianteira repenicando o instrumento e alteando a garganta em canções de Coimbra.
Quando não, lá iam ao Posto da Guarda passar uma noitada e tinham que responder perante o juiz, estes criminosos de matar a fome.  Mas tudo passava, porque as penas eram curtas e a vida larga, e como dizia o Carochas, “ não há lei p'ra quem precisa, nem pena para quem salva”.

Um pequeno texto de Brito Camacho fala-nos da pesca com nassa. Num acto de memória e saudade, diz ele (...) Se ainda apanharei, armando a nassa, pardelhas grandes do Burdo, e depois de as apanhar enfiando-as pela cabeça, n’um junco, quando a pesca era pouco abundante d’algumas dúzias apenas (Brito Camacho, Gente Vária).

Também num outro texto de minha autoria descrevo genericamente a pesca à lapa: Mas como o calor crescia, eu e meu primo Dadinho queríamos ir banhar na ribeira. Só vão banhar se o Ti Manel do Arrabalde for com vocês –sentenciou meu tio Elias. O Ti Manel estava pelos ajustes – Vamos embora que eu vou apanhar uns pêxes à lapa p’ra assarmos nas brasas. Que rica ideia! Lá fomos com ele e, nuzinhos, andámos atrás do homem a vê-lo tirar peixes, como que por milagre, dentre as pedras do açude do moinho. A gente nem acreditava. João, põe lá aqui a mão que está cá um e não se pode ir embora. Agarrei-o a tacto e quase o ia esmagando da força que fazia, tal era a minha glória. Passámos a manhã no pego chafurdando na água sombreada de freixos, e fomos nós, depois, que arranjámos as bogas e as assámos, comendo-as com alegria de eleitos. Sabiam um bocadinho a lodo, mas o sal disfarçava o gosto (Monarca Pinheiro, Terra de Grandes Barrigas, Onde Só Há Gentes Gorda). 

 

Gastronomia do Peixe do Rio


Eram vários os cozinhados que se faziam tradicionalmente com os peixes do rio: a caldeta de barbos com hortelã da ribeira e poejos secos, a carpa assada no forno com batatas, a sopa de peixe (barbos, bogas e bordalos ) com poêjos secos, a fritada de pardelhas e bogas, os barbos fritos.

Mais recentemente faz-se muito achegã grelhado em molho de azeite, alhos, sal e poejo,
achegã de molho de tomate, sopa de tomate com achegã,  percas de escabeche.

Dou alguns exemplos de como se cozinhava o peixe do rio através de dois textos de minha autoria, retirados do livro Terra de Grandes Barrigas, Onde Só Há Gente Gorda, e de um de autoria de João Mário Caldeira, retirado da sua obra Margem Esquerda do Guadiana, As gentes, a terra, os bichos.

O primeiro intitulei-o Com um cheirinho a poejos e hortelã da ribeira: De repente chegava a casa, pegava nos tresmalhos e minha avó já sabia aonde ele ia. Já vais p’rá maltesaria! Dizia-lhe ela arreliada, pois meu avô rentava-se na latoaria e nas obras dos fregueses para ir com os amigos à pescaria da Fonte Santa. Ele resmungava, alçava-lhe a mão e ela encolhia-se, que remédio, coitada.
Via-o abalar com os amigos, montados nos burros com os alforges cheios, e corria atrás deles: Avô, deixe-me ir consigo? Diabo do gaiato! Diz a tê pai que te leve, ele que t’ature!
Antes de almoço, sem saber como nem porquê, mistério dos grandes, meu pai põe-me em cima da motorizada e leva-me com ele. Por entre caminhos de xisto, pó e estevas, a velha motorizada roncando, eu agarrado ao seu tronco para não cair com os solavancos, lá chegámos à ermida da Fonte Santa, ladeada pela ribeira de águas frescas, frondosos plátanos, salgueiros e vimes altos.
Ao lume de chão, numa barranhôa, já fritavam as fatias de toucinho velho e meu avô ao ver-me chegar riu-se: Malandro, tinhas que cá vir chêrar! Ele sabia que eu lhe saía e que dava a vida por uma petisqueira e depois punha-se a mangar.
O tomate, as batatas, as cebolas, os alhos e os pimentos descascados, esperavam num alguidar de barro cheio de água. Os barbos arranjados e as pardelhas e bogas em enfiadas de paus de oregãos, aguardavam a sorte num prato vidrado rameado de pétalas. Agora era a vez da linguiça e farinheira darem o gosto à gordura da caldeta, pois chiavam no fundo do tacho exalando aromas de massa de pimentão.
Acabada a fritura, o tio Graminho, o Cera ou o Cara de Passa, como queiram chamar a este avô do peito, retirava os bocadinhos meio torriscados e fazia o refogado, tomando cuidado para que alguma faúlha não fosse pegar fogo ao pasto. Era verão e o calor ardia nos montes, embora junto à ermida a sombra e a água fresca da fonte, dita Santa, refrescassem o lugar. De repente lembrou-se que lhe faltava o melhor tempero: João! Vai lá ver se arranjas aí uns pés de poêjos e hortelã da ribeira. Pus-me nas pernas e num fenaite ali estava eu com os ramos de cheiros.
Cortou-lhes as raízes, lavou-os e atou-os, vá de irem para dentro do caldo a que em seguida juntou as batatas.
Vá uma pinga de vinho branco a ver se isto toma gosto – dizia ele para o Gaga na Cântara que assobiava, preparando a mesa para o almoço. Eh, pá, prova lá esta bucha com um tinto! Era o toucinho e as pardelhas fritos puxando pela fome, enquanto os barbos boiavam no caldo cheiroso.
Barriguinhas cheias, o vinho puxando pela conversa, era vê-los entusiasmados como deuses. Depois vinha a sesta, que a noite ia ser longa de canto e festa.

O segundo é um excerto do intitulado Deixava no Caldo Um Gostinho Guloso: Deus te Salve, Zéi! Bom dia, ti Manel. Atão como é que vai a pescaria? Manel do Arrabalde lá anda com a atarrafa e parece que já tem além peixe que chegue p’rá caldeirada. Atão agora tem que se preparar o almoço – Manel Fortes deve estar aí a chegar de bicicleta e ele e o gaiato descascam as batatas, os alhos e as cebolas e arranjam os tomates e os pimentões.
Dito isto, enquanto o ti Manel ficou a arrumar os alguidares, tachos, saladeiras, pratos de barro, talheres e a saca do pão, fui espreitar o pescador na ribeira. E lá andava ele em cuecas, com a água pelas coxas lançando ao pego a rede redonda, desemalhando os barbos e atirando-os para a margem de terra seca, numa manhã de sombras frescas, num dia que se adivinhava de quenturas longas.
O Graxa – alcunha por que era conhecido Manel Fortes – já chegara e vinha suado porque a maior parte do caminho era de cabras. Arrumou a pedaleira e os dois lá fomos para a trasfega da preparação dos hortícolas, e ainda levei um cachação de meu pai por descascar mal as batatas – Nâ pode ser, com essas navalhadas mal dadas vai metade p’ró lixo. Toma atenção!
(...) Mesa posta à sombra do alpendre de telha vã e já o vinho corria nas canecas e copos de alumínio, goelas abaixo da companhia. A um canto, Manel do Arrabalde escamava os peixes, tirava-lhes as barbatanas e tripas, lavava-os, salgando-os de seguida. Meu avô João Cera afadigava-se nas frituras de fatias de toucinho velho, bocados de linguiça e farinheira, para fazer o pingo de gordura para a caldeirada, e era com esses enchidos fritos e pão mole que a companhia condutava o tinto trazido da taberna de Hermínio Pinto.
Alhos e cebolas migados em quantidade, louro que chegasse, e o refogado espirrava aromas de fazer crescer água na boca do fastio. Tomates pelados e pimentões partidos para dentro da barranhôa gigante e era um evolar de cheiros intensos quando o mestre Cera mexia a travia com a colher de pau enorme. Fervura aberta em lume constante, vá de deitar água e de deixar ferver novamente, de modo a poder juntar-lhe as batatas e a hortelã da ribeira que lhe dava o divino sabor campestre. Por fim, o peixe salgado cozia em poucos minutos deixava no caldo um gostinho guloso. De pé, porque não havia bancos onde assentar os traseiros pesados, cada qual migava sopas de pão duro no seu prato regando-as com o caldo untuoso, mamando se seguida as barrigas dos barbos, parte do peixe cujas espinhas são menos ferozes, já que todo ele está crivado desses agulhas impertinentes que num ai se espetam nas gargantas dos incautos

O texto de João Mário Caldeira chamou-o ele A tentação dentro de um tacho: Um “caldo de peixe” ou uma “sopa de peixe” do rio são sinónimos em termos culinários. O nome varia ao longo da comprida bacia do Guadiana. Entretanto “caldeirada”, ainda que parecida no sabor e confeccionada com o mesmo peixe, é outra coisa. Em matéria de cozinha é bom respeitar as diferenças, as quais, para os gastrónomos locais, são tão interessante como o melhor tempero.
Vejamos como se confecciona um caldo de peixe no ambiente natural, ou seja, nas margens do rio, em dia quente de começo de verão, sob a sombra da azinheira providencial em terras da Margem Esquerda.
Para o caldo podem entrar as variedades mais comuns do peixe do Guadiana. A saber: barbos, bogas e bordalos. Destes, há sempre quem diga que uns são melhores que outros. O costume, tudo conversas para gozar um dos pratos mais saborosos da comida alentejana. Se o barbo grande, com peso aproximado ao quilo, parece merecer mais consenso nos apreciadores, há pescadores do rio, como António Ologário, que dão preferência às duas outras espécies mais pequenas. Gostos não se discutem.
O peixe é escamado meio vivo, assim que do barco é despejado na margem ou se a pesca é à linha, quando retirado do chalavar, saco de rede mergulhado na água onde o peixe pescado aguarda a sua hora derradeira. A escamação obedece a critérios de muito cuidado, dado que a escama dos barbos grandes é bastante rija. Com o bico da navalha há que procurar nos sítios mais difíceis a escama rebelde que é desagradável no acto degustativo.
Se a escamação é assunto delicado, retirar as vísceras a as barbatanas também merece algumas cautelas.
Quanto às vísceras há que retirar tudo, excepto as ovas das fêmeas, parte muito apreciada. As guelras também são arrancadas porque amargam.
No que toca às barbatanas há quem defenda que sim, e quem defenda que não se devem retirar. Mais comum é deixá-las.
Segue-se um pormenor de certo modo controverso na operação do amanho dos peixes. Retalhar os peixes é fazer-lhes cortes transversais a todo o tamanho do corpo, num lado e noutro, quanto mais aproximados melhor. Os cortes não se destinam só a uma cozedura mais uniforme do bicho ou a uma melhor exumação de sabores, mas fundamentalmente servem para não se dar pelas espinhas, que nestes peixes são em número verdadeiramente impressionante.
Amanhados os bichos arrepiam-se levemente com sal e ficam a aguardar, num alguidar resguardados das moscas.
Num lume de rama de azinho aceso entre três pedras põe-se o tacho de ferro de duas asas onde previamente se migou alho, cebola, tomate, cebolinho e hortelã da ribeira, poejos e se deitou sal e azeite quanto baste, procedendo-se a um leve refogado.
Deita-se depois água, antigamente a do rio, e deixa-se ferver em lume brando.
Antes de abrir fervura deitam-se os peixes partidos aos bocados se são grandes para que cozam breves minutos após o começo efectivo da fervura.
Entretanto migaram-se sopas de pão duro num alguidar sobre as quais se deita o conteúdo do tacho, excepto o peixe que fica à parte noutro recipiente.
Está pronto. Os peixes, que se comem a acompanhar as sopas, costumam polvilhar-se com sal grosso. Ficam bem azeitonas de conserva no compasso da degustação. Dado o calor ambiental, aconselha-se um vinho branco fresco.
Após, deve respeitar-se a tradição da sesta, enquanto se faz o quimo. O Guadiana agradece.

A carpa assada é um cozinhado delicioso, mas tem um segredo para que seja bem feito. Sendo um peixe com centenas de espinhas, muitas tão miudinhas, é difícil, ao comê-lo, a pessoa não se engasgar ou até não espetar uma na garganta, pelo que, a solução encontrada, para quem gosta deste peixe, foi retalhar transversal e milimetricamente o dorso do bicho, deixando-o de um dia para o outro em sumo de limão, com o objectivo de as espinhas poderem ser comidas sem se dar por elas, devido aos cortes e ao ácido do limão que ajuda a desfaze-las.  
A receita tem duas variantes. Primeira: depois de uma noite em sumo de limão, pode fazer-se um piso de alhos, poêjos e sal com azeite, com o qual se esfrega o exterior e o interior do peixe (para tirar o cheiro e sabor a lodo e dar-lhe o sabor do poejo, que é muito agradável) indo a assar/grelhar em lume brando. Segunda: num tacho de barro mete-se o peixe já salgado com os seguintes temperos: azeite, alho e cebola partidos às rodelas, colorau e pimenta preta e até cravo-de-cabecinha, muita salsa e vinho branco e batatas partidas aos quartos. Vai ao forno a assar devendo-se, com uma colher, de quando em quando, pôr molho por cima do peixe para a pele não ficar muito assada.

As fritadas de peixes são feitas sobretudo com os seguintes: pardelhas e barbos.
As pardelhas são fritas sem ser destripadas. Depois de enroladas em farinha ou não, vão a fritar, espetadas pelos olhos, num pau de oregãos, são salgadas depois de fritas.
Os barbos tiram-se-lhe as barbatanas, são escamados, destripados e partidos aos bocados, deixando-se ficar em sumo de limão ou vinagre para tirar o cheiro e sabor a lodo. Depois de enrolados em farinha ou não, vão a fritar em óleo a alta temperatura até ficarem quase torriscados por fora, modo de se poderem comer sem se sentirem as espinhas, que são muitas e afiadas. No concelho do Alandroal, particularmente em Juromenha, é que os comi muito bem fritos e saborosos.

No Rio Degebe, um dos maiores afluentes do Guadiana, a prática da pesca de rio com artes artesanais também foi muita, porque onde havia moleiros havia pescadores de rio.
José Polido Leal, um antigo moleiro do Moinho do Alcaide, Monte das Mestras, contou-nos o seguinte episódio passado com uma patrulha da Guarda Republicana, episódio que retrata a tradição de pescar no rio furtivamente e de fazer sopa de peixe a que ele chama sargalheta:  Agora vocês vão, ê faço aqui a sargalheta e quando chegam ali ô monte, àquele monte ali às Mestras, voltam p'ra trás e diz que se esqueceu duma coisa qualquer — a contar-lhe eu, a ele, estávamos só os dois. Fazemos assim. Bom, eles lá foram andando... Temos que lá voltar ao moinho, eu estive a falar com o moleiro e atão há aqui uma volta que não está muito boa e temos que lá voltar. Quando eles chegaram, já estava a mesa posta. E ê digo p'rá mulher: Vá, vamos lá a almoçar. E digo eu p´ró Silva: Ó sô Silva tire aqui uma buchinha mais a gente, há aqui uns pêxinhos c'o senhor gosta tanto. Isso o que foi nã interessa, o que foi já foi. Nisto, volta-se p'ró colega e diz-lhe: Desculpa, mas ê tenho que tirar pelo menos um pêxe, qu'isto p'ra mim é um pratinho do meio. E digo eu pr'ró praça: Sente-se também o senhor, tire um caldinho. O homem senta-se, conforme se assenta, bebe um copinho. Táva-lhe a saber bem e diz-me: Atão o senhor se não lhe fizesse deferença, dava-me mais uma pinguinha. Ora essa, tem aqui uma garrafa, beba aquilo que quiser. Ô fim e ô resto, o gajo diz assim ô cabo: Bom, estás satesfêto? Atão vamos embora. Quando pôs os pês p'ra sair da porta p'ra fora diz o praça assim: O qu'é ca gente fazemos à pessoa? Ah, atão como isto a gente não apanha em banda nenhuma, pode haver igual, mas como isto não. Olhe, a gente vamos-lhe perdoar. Diz o cabo p'ra ele: O problema é teu.



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No evento
ALMOÇO CULTURAL
“O PEIXE DO RIO”
Moinho do Alcaide
Herdade das Mestras de Baixo
ÉVORA

25 / Maio / 2003





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