O POVO DO PÃO
O Rosário do Pão Alentejano
Da Terra à boca, o Pão nosso identitário
J.M.Monarca
Pinheiro
Evento cultural
“O CICLO DO PÃO”
(Reviver as fainas agrícolas e outras
ligadas à alimentação no Alentejo)
A Ceifa, o Transporte
do Trigo em Carroça, a Debulha, a Moagem, a Cozedura e O Pão
Moinho do Alcaide
Herdade das Mestras de Baixo
ÉVORA
28 / Junho / 2008
(Este é o 9º evento do Ciclo do Pão
O primeiro foi em Junho de 1997 junto ao
Moinho do Cu Torto (Sede da Confraria)
em que a debulha foi feita na eira, com Malhos)
Patrocínio
CÃMARA MUNICIPAL DE ÉVORA
O POVO
DO PÃO
O
Rosário do Pão Alentejano
Da
Terra à Boca, o Pão nosso Identitário
J.M.Monarca Pinheiro
O POVO DO PÃO
J. M. Monarca Pinheiro
Não há outro português mais rico de pão.
Miguel Torga, Portugal – Alentejo
Terra resgatada e vitoriosa do brejo, terra
ensoberbecida da primazia criadora do Pão, havia nos que a pisavam um reflexo
do seu orgulho e da sua real dignidade. Criar o pão – o pão, alimento primário,
e Deus até numa hóstia - participava duma grandeza sublime, envolvia quase um
prestígio sagrado.
Manuel Ribeiro, Planície Heróica
(...) a delícia de
um pão de trigo amassado e cozido duas vezes por semana.
Antunes da Silva, Uma Pinga de Chuva
O que seria do Alentejo sem este pilar da sua cultura identitária que é o
pão? Não seria, o Alentejo não seria Alentejo, seria outra cultura qualquer mas
não seria Alentejo.
De tal maneira o pão esteve (e está) presente no nosso quotidiano, que ele
atravessou a vida dos alentejanos em todos os sentidos, podendo dizer-se que,
da terra à boca, o pão foi uma criação omnipresente que, directa ou
indirectamente, sustentava todas as actividades da nossa região. A própria
paisagem agrícola alentejana mudava ao longo do ano em função das diferentes
necessidades de tratamento da terra que levava à produção de pão.
Produtor de pão, o alentejano foi e é um comedor de pão, dele se
sustentando há séculos, de geração em geração, dele fazendo, até há bem pouco
tempo, a base da sua alimentação, com ele criando a gastronomia do pão,
fazendo-o entrar na maioria dos pratos que inventou, dando-lhes sempre um toque
de diferença quer na confecção, quer na ilusão, porque, tendo muitos deles o
pão como base, era preciso seduzir, sábia e saborosamente, os paladares através
de formas várias de o cozinhar ou de o comer. Hoje, sendo ainda muito
importante na nossa alimentação, o pão já não tem, talvez, o espaço que ocupou outrora,
mas continua a ter uma presença muito forte, e é um elemento fundamental da
gastronomia cultural que oferecemos aos visitantes. Daqui que, se percorrermos o
rosário do pão temos muito que conhecer e aprender, tal foi o caminho
andado para aqui chegar.
O Caminho – Alentejo, o celeiro do grande povo de
Lisboa.
Já se fazia pão no território que é hoje o Alentejo antes da chegada dos
Romanos à Península Ibérica? Já. Mas o pão de que nos fala Plínio (Historia Natural) e Estrabão (Geografia) quando se referem aos
Lusitanos e as outras etnias do oeste peninsular ou que João Aguiar (A Voz dos Deuses) cita, é um pão feito
de bolota, o que não quer dizer que não se conhecesse a farinação de algumas
sementes de cereais espontâneos através do moinho de rebolo ou de vai-vem e não
se usasse essa farinha para fazer a massa ázima que depois de cozida em pedras
quentes dava “pão”.
Porém é com a vinda dos exércitos romanos (sécs. II e I a.C.) que se
generaliza o uso das mós manuais de movimento rotativo (mola manuaria) e o moinho ibérico (mola hispaniensis, moinho de duas mós redondas sobrepostas, sendo a
pedra de cima accionada por meio dum manípulo rotativo movimentado por pessoa
ou animal – moinhos referidos no trabalho Tradições
da Moagem, de R. Arimateia).
O cereal que estes moinhos moíam era o trigo, cultivado em grandes
extensões, em particular nas planícies dos ricos barros da futura Pax Julia, trigo que, farinado e amassado com água, sal e levedura fazia uma
massa dividida à mão e colocada no furnus (forno) por pás de madeira de cabo
comprido para cozimento, apresentando uma estrutura muito compacta (...), uma
forma arredondada dividida em oito segmentos, indo depois alimentar as
legiões romanas (R. Étienne, A Vida
Quotidiana em Pompeia).
As grandes villae romanas de Monforte, Pisões e S. Cucufate provam a
antiga ocupação agrícola em que o cultivo do trigo estava bem presente.
Segundo Alfredo Saramago, Quando os romanos chegaram ao Alentejo já o
pão ázimo tinha sido substituído por pão com fermento. O pão tinha uma
confecção caseira e eram os escravos das casas particulares que o fabricavam,
sendo obrigados a usar luvas para o amassarem, exigindo-se também que usassem
uma máscara na cara para que os pingos de suor não caíssem na amassadura.
O cozimento começou por ser feito em cinzas, depois em brasas campânulas e
finalmente no forno. O aparecimento de padeiros ocasionou uma viragem no
fabrico do pão. Começou a utilizar-se a levedura de cerveja como fermento, a espuma
concreta, que era retirada debaixo do líquido fermentado da cerveja. Esta
levedura tornava o pão mais leve e com um maior crescimento. Os padeiros tinham
um colégio próprio, com fortes intenções corporativas, formando uma casta.
Era-se padeiro de pai para filho, com interdição de se sair dessa situação por
casamento exogâmico. Os filhos de padeiros não podiam ser sacerdotes,
militares, ou exercer qualquer função jurídica.
(...) O pão romano apresentava-se com uma forma redonda com a parte de cima
desenhada com vários motivos, mais simples ou mais elaborados. O melhor pão de
Roma era o siligeneces, feito de farinha fina, comida de patrícios e de outras
pessoas de importância. Fabricavam também o plebeius, também chamado sordidis,
fabricado com farinha de má qualidade, pão que agasalhava os estômagos de gente
pobre. O pão ostrearius era feito para ser comido exclusivamente com ostras e o
pão pinenium era fabricado com
a junção de passas de uvas e cozido em formas de barro, comendo-se encharcado
em leite (Alfredo Saramago, Para Uma História da Alimentação no Alentejo).
A partir do séc. VIII, com a invasão muçulmana da península e a introdução
das atafonas (do árabe at-ta´huuna
cuja raiz significa moer), movidas por animais, e das azenhas e dos moinhos de
rodízio, movidos por correntes de água de rios e ribeiras (R. Arimateia, ob.
cit.), dá-se um grande desenvolvimento da moagem, proporcionada pela abundância
de cereal.
Escrevendo há mil anos, um geógrafo árabe, Al Razi, mais tarde lido pelos
cristãos, porque traduzido, não deixou de evocar: Beja (ou seja, os campos que rodeiam a cidade, mais do que o resto da
sua vasta circunscrição) é mui boa terra e de boa sementeira... (José
Mattoso, Suzanne Daveau, Portugal- O
Sabor da Terra, Baixo Alentejo).
Quatrocentos anos depois, o autor do De
Ministerio Armorum fala assim do Alentejo: É fértil em tudo, mas especialmente em trigo que se conserva em silos
durante quinze anos ou mais, perfeito e em bom estado, o que constitui uma
grande riqueza (Mattoso,Daveau, ob.cit.).
Mas Duarte Nunes de Leão (Descrição
do Reino de Portugal, séc. XVII), repõe a verdade afirmando que eram
somente os campos de Évora, Beja, Serpa, Moura e Campo de Ourique os mais
abundantes em trigo, considerando-os o
celeiro do grande povo de Lisboa.
Quem leu a História Breve da Produção
de Trigo em Portugal, artigo de Palminha da Silva (Diário do Sul de
19/3/02), pode concluir que, apesar das medidas tomadas pelos vários poderes ao
longo dos últimos séculos para aumentar a produção de trigo e de pão, de forma
a satisfazer as necessidades do país, que foi quase sempre deficitário nestes
produtos (cartas de foral, instituição
das feiras, surgimento dos terreiros do trigo e dos terreiros do pão, dos
celeiros comuns, medidas de arranque de vinhas utilizando esses campos no
cultivo de trigo, proteccionismo à produção, lei dos cereais, subsídios aos
industriais de panificação, a campanha do trigo, criação de melhoramento de
plantas e fundação da Federação Nacional dos Produtores de Trigo e da Caixa de
Crédito dos Produtores de Trigo), nunca se conseguiram ultrapassar
problemas estruturais tais como: os climáticos, a pobreza dos solos, a falta de
população e os tecnológicos.
No Alentejo, os agricultores, mais propriamente os ganhões, nos últimos
tempos, lavraram a terra, semearam, colheram, debulharam o trigo, introduzindo
recentemente novos processos de rentabilização mas com pouco sucesso:
Os latifundiários iniciaram a mecanização das suas
propriedades a partir da década de 40, tendo vindo a empregar tractores,
ceifeiras e debulhadoras sempre que as condições o permitem. Alguns deles
recorreram a peritos agrícolas com o fim de experimentarem novas variedades de
trigo, aumentarem as quantidades semeadas por hectare e ensaiarem novas
combinações de adubos. Todos estes esforços não obtiveram, porém, resultados
substancialmente diferentes dos conseguidos pelos métodos mais tradicionais
praticados pelos lavradores menos abastados
(José Cutileiro, Ricos e
Pobres no Alentejo).
Da mesma opinião é Mattoso e Daveau:
É claro que o muito protagonismo que
o Baixo Alentejo deteve nas várias construções políticas em que o seu
território esteve integrado se ficou a dever à sua principal produção – o
cereal. (...) Ora, na região, cereal quer dizer, antes de mais, o trigo. É dele
que se faz o pão ancestral, aquele pão pesado e branco que é a base da
alimentação alentejana na açorda, nas migas, nas sopas. (...) A faceta do
celeiro inesgotável aplicava-se tanto ao Alto como ao Baixo mas parecia
encontrar na planície central entre a serra de Portel e o Campo de Ourique um
exemplo feliz – juntas de bois ou de muares puxando o arado a abrir sulcos em
campos sem fim, trigais a perder de vista, os trabalhos dos ranchos na ceifa, o
descanso do meio-dia à sombra da ocasional azinheira ou do sobreiro. Um
Alentejo de ontem, dirão alguns. Mas a mecanização, na esmagadora maioria dos
casos, recente, não subverteu o essencial desta imagem. Porém, a imagem de um
Alentejo centrado na cultura cerealífera é simultaneamente uma verdade e um
equívoco (Mattoso, Daveau, ob. cit.).
Mas, apesar de economicamente o
trigo nunca ter sido, verdadeiramente, uma cultura rentável no Alentejo, a
verdade é que o viver das gentes alentejanas ficou marcado por este cereal do
qual sempre se extraiu o pão que as caracteriza culturalmente.
A literatura, alguma de pendor etnográfico, disso nos dá provas. Sigamos o
ciclo do pão e atentemos na riqueza dos testemunhos.
A Terra – As taras do latifúndio
Diz-nos Mattoso e Daveau (ob. cit.) que Como
noutras áreas da província, nas planícies de Évora ou de Beja, a predominância
do trigo, a que aqui, por vezes, nos terrenos mais pobres se começava a juntar
o centeio, trouxe consigo um regime de propriedade pela complexidade da
hierarquia dos direitos sobre a terra e pela presença de grandes unidades de exploração,
as quais, pelo menos desde o século XIX, período para o qual já possuímos dados
suficientes sobre a sua dimensão exacta, podem atingir milhares de hectares.
Trata-se dos antiquíssimos latifúndios explicados na sua génese por Orlando
Ribeiro:
Os latifúndios alentejanos ascendem (...) à época romana. Na terra vasta
e uniforme, escassamente povoada, assolada pelas guerras da Reconquista,
talharam os primeiros reis os limites de enormes doações, a ordens militares
principalmente, mas também a conventos e magnates.(...) Com as leis liberais,
passaram à posse do Estado grandes domínios das ordens religiosas e militares,
arrematados depois em hasta pública pelos ricos novos da cidade e aboliram-se
os vínculos e morgadios, dividindo-se as propriedades por todos os herdeiros;
às vezes o casamento entre gente da mesma classe arredondava de novo o
património. Até ao terceiro quartel do século XIX predominavam vastos tractos
de charneca e a cultura regular fazia-se apenas em torno das povoações e nos
melhores solos. Quando no fim do século a "lei dos cereais" elevou as
pautas à importação de trigo e instituiu auxílios e prémios para estimular a
produção nacional e os caminhos-de-ferro asseguravam o abastecimento das
cidades, onde se generalizou o uso do pão branco, romperam-se estes terrenos
virgens, que deram searas opulentas. Há espaços onde as arroteias abriram pela
queimada grandes peladas, eliminando por completo as árvores do montado. Mas a
terra pobre e delgada, logo deu indícios de cansaço: houve que alargar os
pousios e procurar, nos arvoredos e nos gados, a compensação dos rendimentos
muito baixos do cereal.
A riqueza consegue-se só à custa de espaço. Quando no último século, a
população cresceu em ritmo acelerado, estava a terra agrupada em poucas mãos,
arredondada pelos casamentos, tantas vezes imobilizada numa classe que apenas
se preocupa em lhe usufruir o rendimento. As herdades passaram a ser arrendadas
em prazos curtos: os rendeiros, para tirarem bons lucros, cansam a terra e não
têm interesse em melhorar um bem transitório.
As taras do latifúndio, o absentismo, o baixo rendimento, a rotina, as
desigualdades sociais, preocupam, desde os perspicazes economistas do século
XVII, os espíritos reflexivos (Orlando Ribeiro, Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico).
Brito Camacho emitiu opinião
sobre a questão:
Quaisquer que sejam as origens históricas dos latifúndios alentejanos, a
coisa certa é terem eles resistido ao fraccionamento pela natural evolução da
propriedade, mercê da paixão, da insaciável fome de terra que tem o homem do
Alentejo, os remediados e os ricos, tão grande que os leva a empenharem-se sem
remédio, enfeudando-se aos Bancos ou aos usurários, para adquirirem mais
courelas ou mais herdades, pagando juros excessivos, que os seus rendimentos
líquidos não comportam (Brito Camacho,
Por Cerros e Vales).
Também Fialho de Almeida os
refere:
As grandes extensões de
território, no Alentejo, pertencem a dez ou doze nababos que vivem nos grandes
centros, indiferentes ao cultivo, e empenhados somente em perceber num prazo
fixo o dinheiro das rendas, para a sustentação das suas prodigalidades e
magnificências. Subtraindo ao Alentejo aqueles grandes domínios de florestas e
terra arável, o que resta são ourelas magras à volta das raras aldeias e baldios
improdutivos, calcinados, sem ervas nem chaparros, que os pequenos disputam e
repartem entre si, ciosamente. (Fialho de Almeida, O País das Uvas ).
E Manuel Alegre dedicou ao problema da terra alentejana, medida em herdades
de milhares de hectares, um poema, Breve
Sumário da História do Latifúndio, de que transcrevemos a primeira estrofe:
Pode ser túmulo ou trono
Nossa cova e nossa mãe
A terra só tem um dono
E o dono é quem a não tem
De todos e de ninguém
Nossa paz e nossa guerra
E no fim só é de quem
Tem sete palmos de terra.
(Manuel
Alegre, Alentejo e Ninguém)
Lavra e Sementeira – Minha junta vai puxando
Os pousios, as queimadas e os alqueives eram as formas mais comuns de
preparar a terra para a lavra e para uma boa produção. Das queimadas, enquanto
forma de adubação natural, fala-nos o poeta bejense Mário Beirão: De noite,
nas planícies desoladas,/-Barros sangrentos, campos de restolho , -/Há vivos,
fulvos tons...Pra onde eu olho/Contorcem-se queimadas.(...) Com flavo trigo
sonha a luz que reverbera,/Sonham as chamas claras:/No mato em cinza, pela
primavera,/Hão-de esplender ondulações de searas (Mário Beirão, Poesias
Completas); e Vergílio Ferreira: Mas a minha atenção prende-se à cidade,
à planície. Para os lados da estrada de Viana descubro um espectáculo
extraordinário que me alvoroça, que me fascina: numa vasta extensão de terreno,
um incêndio lavra interminavelmente, iluminando a noite. É uma ”queimada”,
suponho, o incêndio do restolho para a renovação da terra. Alinhadas pelos
sulcos, as chamas avançam como um flagelo inexorável”(Vergílio Ferreira,
Aparição).
Mas, no que se relaciona com a adubação das terras, A Companhia União
Fabril (CUF) realiza nos anos trinta uma vasta rede de campos de experimentação
por forma a que in loco os agricultores pudessem observar os benefícios do
emprego de adubos nas suas sementeiras - os superfosfatos (A. Gamito
Chaínho, Ruralidades), adubos químicos que lentamente foram substituindo os
processos antigos naturais, por processos artificiais que haveriam de
contribuir para a poluição das terras e das águas com que nos confrontamos
hoje.
Capela e Silva dá-nos um quadro profundo deste trabalho de amanho da terra
em busca do pão, tarefa que começava logo depois do S. Mateus (finais de
Setembro, princípios de Outubro) - Águas
novas verdadeiras, pelo S. Mateus as primeiras -, terra adubada a rabo de ovelha, como se dizia da terra
onde passavam os rebanhos que com o seu estrume a fertilizavam:
Os ganhões em movimento; os bois e
as muares espectadores mudos d’aquele primeiro acto da sementeira, o boieiro
encostado à cacheira parecendo o dono da boiada; o embelgador já distante,
gritando imprecações à bêsta da bélga; o carreiro a largar os sacos de trigo,
um aqui, outro além; o semeador de sementeiro ao ombro, inchado de trigo,
chancadas firmes e largas, braço forte arregaçado, dando os dois arcos sobre a
bélga; o trigo a saltitar na sua frente; a disciplina e entusiasmo que se evola
dêsse quadro digno de um Rafael; é uma das manifestações mais empolgantes, mais
comovedoras, da vida agrícola do Alto Alentejo.
(...) E rompe com a junta, a melhor
piscola, direito à torna, abrindo o primeiro rêgo pela partilha, gritando
estribilhos, olhando para traz, ou curvando-se para destrocer o terreno na sua
frente. Seguem-se as outras juntas, cordão que não tem fim, em gritaria
desconexa, badalar de chocalhos, imprecações, aguilhadas de artilharia no
sovaco, guiando os bois que marcham hesitantes, esquecidos de lavrar(...). O
chocalhar da boiada junta-se ao sussurro das leivas e aos cantares da ganharia,
e a piscola lá anda alegremente no seu vai-vem contínuo na labuta do pão (Capela e Silva,
Ganharias).
A terra-mãe à espera da semente, o homem-semeador crente, a força bruta das
juntas de bois e eis o mote deste trabalho de deuses:
Para a sementeira verificava-se se
os arados estavam em boas condições para se lavrar com elles, sobretudo se
estavam bem enferrados, não fosse o ferro cair mal entrasse na terra. Um carro
de bestas levava a semente, o saco ou alforge das merendas, e a copa da
ganharia, isto é, as mantas, se havia ameaças de chover.
Uma vez chegados ao sítio, onde
devia começar a lavoura, já embelgada a terra, cada qual tomava posse da sua
mão, feita pouco antes a semeadura. Nem todos sabiam temperar o arado, que devia
tanchar mais ou menos conforme a terra; uns temperavam-n’o pela caixa,
servindo-se de rodelos, pequenos bocados de coiro, que para mais nada serviam;
outros temperavam-n’o pela guela, metendo-lhe uma cunha; outros, os que mais
sabiam do ofício, temperavam-n’os pelo tamoeiro, mais esticado ou mais frouxo (Brito Camacho,
Gente Vária).
Mas Francisco Bugalho é mais
certeiro em curtas palavras poéticas:
Minha junta vai puxando
Morosa, lenta, cansada;
Que a leiva que vai virando
Vai ficando bem virada.
Passam dois corvos grasnando
À minha volta mais nada...
A
relha que rasga a terra
Rasga e beija docemente.
- Breve se acaba esta guerra
Só de sonhar a semente.
Nos vales da terra molhada
Piam abibes em bando.
E a leiva sobe na aiveca
E vai ficando tombada,
Ao seu feitio moldada,
Sobre uma leiva já seca.
Minha junta vai puxando
Pesada, lenta, cansada...
Ao fundo, no horizonte
Só um sobreiro pasmado;
Nem um ruído de fonte,
Nem um chocalho de gado.
(Eugénio de Andrade, Alentejo não tem
Sombra, Antologia de Poesia Contemporânea sobre o Alentejo).
Trabalho duro, Quando chovia muito, a
potes, os homens abrigavam-se com o gado, enrolados nas mantas, muitos deles
sem botas altas, de modo que ficavam encharcados para todo o dia, e à noite
recolhendo ao Monte, não tinham outro recurso senão enxugar no corpo, ao lume,
a copa molhada ( Brito Camacho, Gente
Rústica).
Mas tal não os impedia de cantarem quando era ocasião. Disso é exemplo a
quadra popular: Ó patrão dê-me um
cigarro/ Acabou-se o tabaco/ O trigo que eu hoje entarro/ fumando dá mais um
saco.
Depois, em Março, se o ano ia bom para as searas, era vê-las ondulantes na
sua lonjura de verdes-vivos-esparsos a perder de vista, mescladas das flores da
Primavera. E um ano bom era um ano em que em Março e Abril chovessem umas boas
pingas de água:
Porque choveu alguma coisa –
louvores sejam dados a S. Miguel! – n’estas ultimas vinte e quatro horas, as
searas mudaram de aspecto; dir-se-hia que as chuvas as desentorpeceram,
dando-lhes vigor e frescura. Os prados, como as searas, beneficiaram da rega,
sendo já licito ao lavrador esperar que os seus gados, nos asperos mezes do
verão, não precisem comer, por terem pasto com fartura.
Atravessamos, por uma vereda, uma
seara de trigo que nos encanta e maravilha, seara que irá além de quinze
sementes, se o tempo lhe servir.
Que trigo é este , sr. José?
Saberá sua senhoria que é trigo
engelino.
Na terra de sua naturalidade este
trigo chama-se argelino; mas por aqui toda a gente lhe chama engelino, que é
uma denominação portugueza, um bocadinho arrevezada é certo, mas portugueza em
todo o caso. Lindo campo de trigo não há duvida, e as papoilas encarnadas,
d’uma côr tão viva como se acabassem de sair d’um banho do mais puro sangue
arterial, pondo no vasto campo uma nota de sensibilidade artística...
(Brito Camacho, Por Cerros e Vales).
No romance Aparição, Vergílio
Ferreira retrata a tragédia do semeador alentejano que perdeu a mão para
semear, que escolhe a morte perante a impossibilidade de continuar a ser
semeador, quiçá contra o patrão-latifundário que lhe nega a esmola do trabalho,
descrição de cru realismo eivada de forte simbolismo, dando uma projecção
universal-existencial ao trabalho do homem rural alentejano em busca do pão,
isto é, da sobrevivência, mostrando a sua forte identidade e profunda
dignidade.
Era um caminho mau, escavado das
chuvas e dos carros de mulas. Para um lado e outro estendiam-se as terras
escuras e abandonadas. De longe em longe erguia-se o espectro de uma ou outra
azinheira.
Subitamente, à beira de um monte, um
homem de pelico ergueu a mão ao carro. Eram três ou quatro casas apinhadas num
terreiro. Moura parou e reconheceu o homem:
- Você outra vez? Então o que é que
há de novo?
- Eu sabia que o senhor doutor ia
ali à dona Alzira e pus-me aqui à espera.
- Mas então o que é que há?
O homem olhou-me para ver até que
ponto eu podia participar do seu segredo.
- Se é preciso, eu saio - declarei.
- Não, acho que não - disse Moura -
O senhor doutor pode ouvir? - perguntou.
- Ele também é doutor? - adiantou o
homem raiado de esperança.
- É doutor, mas não é médico. Diga
lá então.
E o homem contou uma história
incrível. Moura já a conhecia, porque fez referência a uma consulta na cidade.
Mas de nada lhe valeu, porque o homem queria contá-la outra vez desde o
princípio. Receava decerto que lhe tivesse falhado algum pormenor e que isso
lhe destruísse a esperança. Contava-a agora de novo:
- Quando foi da sementeira, o patrão
Arnaldo disse-me: «Ó Bailote, tu já não tens a mesma mão para semear.» Porque
eu, senhor doutor, tive sempre uma mão funda, assim grande, como um cocho de
cortiça. Eu metia a mão ao saco e vinha cheia de semente. Atirava-a à terra e
semeava uma jeira num ar.
Conta, bom homem, conta o teu sonho
perdido. Tinhas, pois, uma mão boa de semeador bíblico. Atiravas a semente e a
vida nascia a teus pés. Eras senhor da criação e o universo cumpria-se no teu
gesto. E, enquanto o homem falava, eu olhava-lhe a face escurecida dos séculos,
os olhos doridos da sua divindade morta. Imaginava-o outrora dominando a
planície com a sua mão poderosa. A terra abria-se à sua passagem como à
passagem de um deus. A terra conhecia-o seu irmão como à chuva e ao sol,
identificado à sua força de biliões.
- Agora o patrão diz que eu já não
tenho mão.
E mostrava a sua desgraçada mão,
envelhecida, carbonizada de anos e soalheira. Moura olhou-me e sorriu-me numa
cumplicidade.
- Olhe. Faça ginástica aos dedos.
Assim.
E exemplificava. De olhos
escorraçados, o homem lamentou-se:
- Tenho feito, senhor doutor. Mas o
patrão Arnaldo diz que eu já não tenho mão. Veja, senhor doutor, então isto não
será ainda uma mão de homem?
E tentava cavá-la fundo, com os
dedos gretados no ar.
- Então que quer que eu lhe faça?
- Dê-me um remédio, senhor doutor.
Um remédio que me ponha a mão como a tinha. Assim grande, assim funda, assim,
assim...
E moldava no ar a capacidade de uma
mão de Jeová. Fios de sol escorriam de uma azinheira perto da estrada. Os
campos repousavam no grande e plácido Outono. E pelo vasto céu azul, sem a
mancha de uma nuvem, ecoava levemente a última memória de Verão. Moura pôs o
motor a trabalhar.
- Então passe muito bem - disse ao
semeador.
E o carro arrancou, erguendo o pó do
caminho.
Mas a visita à doente foi breve. Era
uma casa fidalga perdida no descampado. Espectros de um outro homem ou mulher
olhavam-me no carro parado, olhavam o silêncio em redor. Regressámos enfim pelo
mesmo caminho. Quando, porém, chegámos ao monte do semeador, saltou-nos à
frente um grupo de pessoas num sarilhada de gritos, de imprecações, braços no
ar, braços apontados para uma loja. Moura saiu do carro e o magote de gente
segui-o. Fiquei só. Mas o médico regressou daí a pouco, pálido, transtornado.
- Que aconteceu?
Ele não respondeu logo, conduzindo o
carro aos tropeções. E só quando o monte se não via já me declarou:
- O homem enforcou-se.
(Vergílio Ferreira, Aparição).
Monda – E as mondadeiras embrenham-se nos lagos
tranquilos de verdura
Serviço de mulheres realizado pelo mês de Março, mondar era uma actividade
de arranque de ervas daninhas que infestavam a seara já crescida:
Benditas as searas! As manageiras,
tocadas desse fluido mágico que se desprende no mês de Março dos mares de pão,
inspiradas, fora de si, têm meneios e desvairamentos de moças, arrebanhando
sofregamente as mondadeiras, como se os ranchos fossem para elas ou se fossem
lavradoras. E a planície espelha-se nas aldeias quando as searas a desigualar,
opulentas de verde entroviscado, são bênçãos de Deus.
Tempo de mondas!
(...) E as mondadeiras embrenham-se
nos lagos tranquilos de verdura, vêem-se só os troncos airosos das mondadeiras,
curvadas, cantando ao desafio, e rindo, mãos calosas empunhando os sachinhos,
guerreando as ervas más para que não matem os pães...(Capela e Silva,
Ganharias).
Mas a realidade e o pitoresco das mondas
são-nos dados de forma mais viva num texto de Brito Camacho:
O sacho é um instrumento leve, e o
trabalho que fazem com ele as mondadeiras não demanda o emprego de muita força,
limitando-se a respectiva mecânica a um jogo quase rítmico de articulação do
punho. Não obstante a mondadeira é, de todos os trabalhadores do campo, o que
emprega mais artifícios para não dar em trabalho o que recebe em dinheiro.
Não se lhes deve querer mal por
isso, coitadas!
A atitude em que trabalham é
extremamente incómoda, dobradas para a frente, em angulo recto, e isso implica
a necessidade que tem de frequentemente endireitarem o corpo, não vá o macaco
que trazem ferrado nas costas parti-las pelo meio. D’aqui o truc do lagarto,
que ninguém vê, e põe todo o rancho em alvoroço; o truc da erva exquesita, que
não é como as outras hervas, e que vae passando de mão em mão, a ver se algum
d’aqueles Broteros com saias é capaz de a classificar; o truc da pedra, que
parece mesmo das minas, e que talvez seja indicio de que ali há jazigo rico a
explorar. Momentos há, muito breves, em que não se vê uma única mondadeira de
corpo direito, e o que se ouve é a música dos sachos, em tom grave ou agudo,
conforme a terra está mais ou menos sêca, escassa ou abundante de pedras.
(...)O compadre Rosa (o manajeiro),
naturalmente, conhecia todos os trucs, e como estava ali de má vontade,
quando as admoestava, era com rispidez. – Vocês não se deixam de cantigas,
sempre a engonhar, e eu despeço-as todas, que o patrão já me deu ordem para
isso, e vou buscar familia a Messejana.
Pobres mulheres!
Algumas, para chegarem ao serviço,
faziam uma caminhada de quatro e cinco quilometros, e depois de um longo dia de
trabalho, ao sol-posto, regressavam a casa fazendo o mesmo percurso. Tinham
almoçado um bocadinho de pão, tinham comido ao meio-dia o que lhes sobejara do
almoço, e por felizes se davam as que à noite, voltando do trabalho,
encontravam uma tijela de caldo quente e uma pratada de xixaros com selcas.
Ganhavam geralmente, um tostão, as que trabalhavam o dia inteiro, e três
vintens as que faziam meio dia.
A verdade é que eu nunca vi as
mondadeiras chegarem ao serviço com ar de aborrecidas, largarem o trabalho com
ar de fatigadas.
Pelo contrario.
O repouso da noite dispunha-as bem
para a faina do dia, e assim elas saíam de casa a cantar, e cantando levavam
todo o caminho. À tarde, mal se ouvia a frase consagrada, para largar – Seja
louvado Nosso Senhor Jesus Cristo – saltavam como estudantes ou como cabritos,
e mal se apanhavam na estrada, organizava-se o côro, rompendo a tiple a
cantoria, e seguindo-se-lhe as outras vozes, em escala musical, segundo as leis
da tonalidade, como n’um orféon (Brito Camacho, Gente Rustica).
Silva Picão diz-nos também Como se monda e quando: A “folha” a mondar
“corre-se” às parcelas de direcção “talhada” ao capricho da manageira ou do
mandante. Em um “eito” se despachado, passa-se a outro e outros, com a
manageira à direita do rancho e o encarregado na rectaguarda, ou onde julga
melhor, para fiscalizar e dirigir.
De chapéu de homem na cabeça, em
trajes de coloridos alegres, a matizarem o fundo verde das searas, de saias à
vontade ou ligadas às pernas, as mulheres põem-se em linha e de cabeça baixa,
algo curvadas, mondam à mão ou com o sacho, o trigo ou o que quer que seja. À mão
simplesmente, nas folhas sujas por ervas grossas de arranque fácil. Ao sacho,
sempre que se queira destruir ervas rasteiras e outras muito radiculadas.
Também se adopta o sistema mixto, em que ora trabalha a sacho, ora a mão,
sòmente. Vai como se pode e calha, pelo que a experiência e circunstâncias
aconselham.
De ordinário, a erva fica no sítio
em que se corta ou arranca. Sendo grossa ou comprida, depõe-se no fundo dos
regos, para não estorvar o desenvolvimento da seara.
(...) Torna-se difícil enumerar
todas (as ervas), mormente as que se confundem e baralham na multidão do
anonimato. Das classificadas na flora popular da região (Elvas), lembam-se as
seguintes: tremoços bravos, saramagos, rinchões, soages, língua de vaca,
malvas, ortigões, pampilros, alabaças, joio, cisirão, negrita, cardos, margaça,
rabo de gato, palanque, toiceiras, espargos, côngitas, trevo, papoila,
unha-gata, almeirões, ervas, fadagosas, bredos, mentrastos, meimendro,
figueiras doidas, erva agulha, galaritos, diabelhas, azedas, setas, espadanas,
olho de mocho e muitas mais de somenos importância (Silva Picão,
Através dos Campos).
Mas às vezes a seara alforrava: apresentando uma vista bonita, crescida,
verde-viva, pujante, escondia um mal que tudo estragava, ou seja, aparentando
muita semente não dava nada.
Antunes da Silva explica:
Pois bem, agora veio Março e aí temos água a matar a sede dos horizontes,
como um cego abrindo os olhos pela manhã e a dizer, “já vejo !” Tenho a ideia
que esta colheita, por via desses casos bicudos, e oxalá que eu me engane, vai
dar alforra... a braveza de um cereal debruado em folhedo, na aparência
saudável e fresco, mas ao fim e ao cabo cheirando a fénico ou a trovisco azedo
... é o trigo palhento ferido na alma da raiz, amarelo no minúsculo casulo...
sem farinha, só cinza branca, que traz a ruína mais completa que se viu (Antunes da Silva, Vila Adormecida).
Trabalho
duro, as mondas ficaram gravadas na memória colectiva através de versos
tradicionais inspirados:
O tempo vai decorrendo
Os trigais crescendo estão
Ervas daninhas colhendo
As mondadeiras lá vão
As mondadeiras lá vão
O tempo vai decorrendo
O tempo vai decorrendo
Os trigais crescendo estão
Camponês alentejano
Camponês agricultor
Tu trabalhas todo o ano
Dás produto ao lavrador
Dás produto ao lavrador
Tua vida é um engano
Ninguém te dá o valor
Camponês alentejano
(M. Giacometti, F.Lopes Graça, Vidigueira/Beja, 1966).
Ceifa – Nas ravinas do monte andam ceifeiros
È significativo o poema do árabe Iiade (1083-1149) sobre as searas: Olha
o campo semeado onde as searas parecem/ao inclinarem-se ante o vento//
esquadrões de cavalaria que fogem derrotados/ sangrando pelas feridas das
papoilas (António Borges Coelho, Portugal na Espanha Árabe).
Se o vento suão vinha com as suas quenturas de derrubar searas maduras, tal
era um perigo que assustava os lavradores. Disso nos dá notícia Manuel Ribeiro:
Faça vossemecê ideia que este ano havia aí uns searões brutos, coisa para
doze sementes e mais, que era um louvor a Deus. Pois vêm umas branduras na
tarde e cascam-lhe uns suões malditos, que se não se lhe mete a foice logo,
mirrava p’raí tudo (Manuel Ribeiro, A Planície Heróica).
Actividade rural duríssima, a ceifa, antigamente feita a braço, era o
melhor exemplo da necessidade e capacidade de trabalho do alentejano. Muito
valorizada, quase todos os escritores alentejanos a referem nos seus escritos
enaltecendo o esforço heróico de mulheres e homens na recolha do pão:
Estou a vêr além, no cerro que fica
em frente do Monte, debaixo d’um sol que queima, os ceifeiros entregues à sua
labuta, suando como n’um banho quente, sem colete, sem jaqueta, a camisa n’uma
sôpa, capaz de se torcer, e o chapéu desabado, como uma sombrinha de boneca, a
proteger-lhes a cabeça. Há na atmosfera uma tremulina, como à bocca d’um forno
aceso (...). O trigo, de ressequido, não dá atilho, e mesmo a junça precisa ser
molhada de quando em quando para não partir.
Por isso mesmo, no rigor da
canícula, os trabalhos da ceifa principiavam muito cêdo, antes de nascer o sol,
por forma que uma certa humidade da manhã tornasse a palha menos quebradiça, ás
vezes tão quebradiça como se fosse de vidro em hastes delgadinhas.
(...) Comido o jantar, uma vezes de
carne, outras vezes de azeite, conforme os dias, o moço fazia distribuição d’água
por aquelles que lh’a pediam...bebida pelo cocharro(...).
Acabado o jantar, fartos como
giboias, os ceifeiros ageitavam-se para uma bôa somneca, alguns fazendo sombra
com a manta estendida em molhos empinados, como um toldo, outros apenas
cobrindo a cabeça com a jaqueta, e os mais pimpões, geralmente os mais brutos,
inteiramente expostos ao sol, a cabeça e o corpo, e o sol a cair-lhes em cima
como se fosse ouro derretido.
(...) As cigarras, verdes e bojudas,
como se o excessivo calôr produzisse n’ellas uma excitação alegre debaixo das
foices, e parecia-me, ás vezes, que havia uma certa concordância, uma vaga
harmonia, entre o seu canto, o ruído, quasi metalico, das foices cortando a
palha, o estralejar das dedeiras de cana umas contra as outras e contra o cabo
da foice, como se fossem castanholas (Brito Camacho, Gente Rústica).
Mas os ceifeiros alentejanos não chegavam para a grande extensão de searas
a ceifar, por isso, entre Maio e Julho, vinham os ratinhos (beirões e homens do
Douro, conhecidos também por “galegos”) ganhar a vida para o Alentejo, a
matula dos ganapães que todos os anos migra das aldeias ratinhas para as
grandes herdades do Alentejo (Fialho de Almeida, O País das Uvas)
:
Vai começar o tormento de quási dois
meses. Examinam mais uma vez a foice, certificam-se que a curvatura em hélice
não deixará que o bico lavre a terra, endireitam-na um pouco mais, quási afagam
as foices como os guerreiros afagam as espadas e esperam.(...) Rondam um pouco
para ficarem de costas ao vento. Os vultos distinguem-se agora melhor com o
aclarar da manhã. Estão concentrados .Alguns mexem os beiços em contracções,
como que falando sós. Rezam...Entreolham-se comovidos a procurar confôrto uns nos outros (...) O
manageiro olha para o guarda. Fixa novamente os ceifeiros... Vamos lá com Nossa
Senhora e que seja em boa hora! Diz por fim em voz alta, para que todos oiçam.
Parece que uma rajada de vento forte
agita repentinamente o ar, tal é o som produzido por aquêles quarenta homens no
momento de se curvarem, dando a primeira ceifadela. Durante alguns minutos não
se ouve mais nada do que o ruído particular das foices a cortar. Os braços
agitam-se contìnuamente, e as gavélas mal se distinguem antes de pousadas no
negalho.
Os da atada correm como doidos, para
não se afastarem das foices.
(...) As foices já brilham.
Os ratinhos avançam como máquina
potente, sem um desfalecimento, e insensíveis ao Sol que os queima.
Começa o martírio da sêde. E os
homens pedem em grita a água que chega mórna, e que é ingerida em quantidades
inverosimeis, continuamente distribuída pelo aguadeiro (Capela e Silva,
Ganharias).
Fernando Namora, no romance O Trigo e o Joio, caracteriza os ceifeiros alentejanos e os ratinhos com rigor.
Uns pediam trabalho numa
submissão confrangedora:
E, por fim, o trigo
amadurou. Como um vento pesado e cheio, ondulava com moleza ao sopro do vento,
e os homens foram-se chegando aos largos das vilas ou aos portões dos
lavradores, aguardando silenciosamente que os distribuíssem por ranchos e
herdades.
Outros vinham já
contratados, quais emigrantes, e eram mal vistos pelos indígenas, embora o seu
trabalho fosse muito valorizado pelos lavradores:
Em seguida chegaram
as fileiras do pessoal emigrado do norte, submisso e silencioso, rostos com
barba de oito dias, a que o suor e a poeira davam tons de chumbo. Ouviam as
chalaças clandestinas ou as exclamações depreciativas dos ceifeiros da vila e
voltavam a mergulhar no trigo. Após eles iam ficando medas de cereal, restolhos
– uma terra saqueada.
(...) Os homens foram
procurando mais vezes a água mole e salobra da aguadeira, talvez também para se
acoitarem durante uns segundos na sombra rala dos azinhos, e, pelo meio dia
descansarem. De mãos entre os joelhos, quietos, como se esperassem um
acontecimento, já não sentiam energia para um gracejo ou para criar um mundo
imaginário. Tinham apenas uma expressão pesada e absorta. Em seu redor, o
silêncio dormia sobre os campos, e árvores, homens, seara, tojos, de tão
desvendados pelo sol, de tão imóveis sob o tempo, pareciam eternos.
Quando o repouso,
por fim os revigorou, os mais novos procuraram-se entre si, desafiando as
raparigas a um diálogo malicioso, até que essa excitação se propagou a todo
o rancho (Fernando Namora, O Trigo e o Joio).
No texto Ceifeiros, Fialho de Almeida carrega o quadro:
(...) Dez, onze horas...o termómetro subiu a 48 e a 50
(...). Desde esse instante, a vida normal fisiológica do ceifeiro é impossível
e entra-se numa flagelação, donde, a poder de teimas, a resistência vital
produz, no meio do trabalho, alucinações de sentido e delíquios. Sob a direita
e intolerável flama do sol, perdeu-se a sombra, sufocante, em brasa viva: radia
de tudo, cega, deslumbra, exala-se de tudo, como se dentro de cada coisa
houvesse um foco directo, incandescente.
(...) Meio-dia, a hora da sesta
enfim! O manajeiro faz o sinal: Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo! Quando
já automáticos, os desgraçados deixam a foice, em tropos galhopos, à procura
dum canto onde cair. Sombras aonde? O sol devora o ar: o termómetro ao sol faz
50 graus completos (...).
Mas o que eles querem é
abandonar-se, caem para ali, seja onde for. Alguns tiram a roupa, encharcada e
fétida de suor e entre as estevas, imundos, nus, tombam de bruços,
deslumbrados, incapazes dum esforço, flácidos, com a inquietação sinistra da
hora, um peso de cérebro que parece a cabeça rebentando do crânio, inchados de
calor e revolvendo sem apetite os alforges, com o paladar encortiçado, o pão
sabendo a terra, a água a caldo, a boca a lodo, e uma ânsia de dormir atroz,
complicada do terror de ficar na primeira letargia (Fialho de Almeida, À Esquina).
Os poetas também os referem e, neste caso, “contrariando” a visão de Fialho
de Almeida :
Estes ceifeiros não são
Os ceifeiros do Fialho.
Têm braços, mãos, almas duras,
Têm fogo no coração,
Têm amor ao seu trabalho,
Por ser trabalhar no pão.
Estes ceifeiros não são
Grilhetas, são orgulhosos
De darem, ao mundo, pão;
Porque são eles que o dão
A pobres e poderosos.
Está hoje vento suão.
Está quente, - oh, gentes! Está quente!
Vamos lá, outro empurrão!
Não vá desgranar-se o grão...
- E a fila marcha prà frente.
Range o restolho cortado,
Pela serrilha da foice,
E aquele mar ondulado,
Que foi lindo mar doirado,
Não tem espiga que baloice.
Quando a gente está afeito,
Quase não sente o calor.
Cortar o pão quer-se feito
Coa a ternura, gosto e jeito
Com que se fala de amor.
(Francisco Bugalho, Ceifeiros)
O soneto, Alentejano, de Florbela Espanca, fala também de
raparigas-ceifeiras, mas o ambiente retratado é idêntico, embora algo idílico:
Deu agora meio-dia; o sol é quente
Beijando a urze triste dos outeiros.
Nas ravinas do monte andam ceifeiros
Na faina, alegres, desde o sol
nascente.
Cantam raparigas brandamente
Brilham os olhos negros,
feiticeiros;
E há perfis delicados e trigueiros
Entre as altas espigas de oiro
ardente.
A terra prende aos dedos sensuais
A cabeleira loira dos trigais
Sob a benção dulcíssima dos Céus.
Há gritos arrastados de cantigas...
E eu sou uma daquelas raparigas...
E tu passas e dizes: - “Salve-os Deus!
(Florbela Espanca, Sonetos)
Para além da literatura, o contar ao vivo da ceifa dá-nos a realidade dos
que a fizeram, dois ceifeiros cujas palavras transformei em artigo
jornalístico:
Já lá vão três lustros que, numa
noite de inverno, os ouvi à braseira - a tia Maria Cândinha e o tio João
Galego. E foi assim que eles me contaram, depois de sucessivas recusas, a sua
vida antiga de ceifeiros. É que falar de desgraças passadas custa, mesmo que
entre elas se reganhe a alegria dum tempo de esperança.
Teriam então vinte e poucos anos, os
anos de querer viver no corpo as aventuras do destino. Jovens já namoradiços
partiram para a "acêfa" pensando em juntar uns cobres a fim do
amiganço - arranjar casa, uns trapos e uns tarimbecos, fugir às famílias, que
era assim o casamento dos mais pobres.
Nesse ano (1951), a Cândinha e o
João foram para a seara juntos porque havia dois grupos, um de homens, outro de
mulheres, e por lá ficaram o mês de S. João, depois do ajuste com o manajeiro
que negociava a paga em nome do lavrador. O costume: para os homens trinta
escudos por dia, para as mulheres vinte e cinco.
"Às quatro da manhã, se a lua
era cheia, o manajeiro mandava enregar - a marzia (orvalho) ajudava a colher o
pão grado, porque nas horas de calma desbagoava. P'rás mãos calejarem mijava-se
p'ra cima delas e para aquecer os interiores bebíamos uns goles de aguardente
da rija. O cabeceira capitaneava trinta homens e vinte mulheres, à pancada (em
fila), p'ra diante e p'ra trás, ou então à marge (regos). Ao nascer do sol
comia-se uma bucha de pão com azeitonas e os homens fumavam o cigarro do
vício" - era o ti João a falar no tom de antigamente, como se de repente a
memória o transfigurasse tornando-se
moço na alma dizente.
A tia Maria ouvia-o, sorrindo de
contente, e aos poucos soltava-se-lhe a língua, porque falar era com ela,
faladeira de gema que até as palavras corriam - "Camisa de algodão aos
quadrados, calças de cotim e botas cardadas, ceifões de lona ou avental de
cabedal nas pernas, mangueiras de pano ou de carneira nos braços, chapéu de
feltro na cabeça e lenço caído no pescoço, era a vestimenta dos homens, que o
sol era o diabo e as espigas picavam como agulhas. Saias arrepanhadas pelo
joelho, meias de linha, grossas, sapatos fechados, camisa florida, lenço estampado a cobrir a cabeça toda e o chapéu de palha
com uma papoila na fita, era a copa das mulheres, que não se ficavam atrás
deles no desembaraço e no sofrer."
"O santo dia ao Sol, uma mão de
canudos (de canas ou cabedal) deitando o pão, a outra certeira cortando-o com a
foice afiada, ficavam as espigas em montilhos de paveia que os garotões atavam
em molhos torcendo o negalho. Atado o pão, vinham os enrilhadores levá-lo para
os montões (rilheiros) que se erguiam no restolho".
Agora já o tio João tomara gosto
pela conversa e me oferecia um bagacinho para animar a festa. "Já o sol
mordia e o mantieiro vindo do monte trazia nas cangalhas do burro o almoço -
oito horas seriam -, uma sopa de hortelã com bocadinhos de bacalhau ou uma sopa
de tomate com presinhas de pechelim, e todos a comermos das mesmas barranhoas -
uns alguidares de barro que no fim ficavam limpos a brilhar de vazios.
A manhã crescia naquela lida
despachada. Porém os ceifeiros, não raro, cortavam os dedos com as foices e
para parar o sangue vá de vinagre p'ra cima dos golpes... ou então de pomada de
gema de ovo e azeite e de raspas do chapéu de feltro - era o momento duma
paragem p'ra endireitar as espinhas e mandar uns dichotes às moçoilas bonitas.
"Ao meio-dia, hora e meia de
descanso p'ró jantar e p'rá sesta - grãos com badana que morria; salgavam-nas e
davam-nas aos ceifeiros; e depois da janta corpo na terra debaixo duma
azinheira" -, dizia-me a tia Maria pondo a mão na cara e chegando a cabeça
ao ombro em jeito de soneca. "À tarde o sol doía, e se não fosse o
aguadeiro morríamos de secura. Aguada! gritava o cabeceira. E lá vinham as
quartas de água p'ra molhar as goelas. Está boa p'rá açorda! gritava o Rato em
jeito de brincadeira, e a rapaziada ria."
O tio João fumava e de vez em quando
tossia com a catarreira. "Vá mais uma pinga p'ra aquecer as
entranhas!" E eu bebia o bagaço dos homens, p'ra ser homem ao pé do homem
que ali tinha.”
"A merenda? Água fria, pão com
azeitonas, umas falhitas de queijo quando o havia e toucinho rançoso" - dizia-me
ele fazendo menção à escravatura. "Enquanto comíamos a ração da tarde -
dez minutos, se tanto - viam-se as carroças carregadas de molhos levando o pão
às eiras p'rá debulha. Se encontrávamos um ninho de perdizes não cortávamos
aquele bocado para elas poderem criar" - acrescentava a tia Maria,
terminando com uns ditados a preceito: "Março, dá ao rabo; Abril, enche o
covil; Maio, chocalho; S. João, perdigotos ao pão; Agosto, atira-lhe ao rosto.”
“Aquilo é que era ceifar até não se
ver, de sol a sol, e às vezes a termos que apanhar as trovoadas no lombo,
encharcadinhos até aos ossos. O que a gente tinha que penar p'ra ganharmos nove
notas num mês - as mulheres sem se poderem lavar, os homens sem a barba fazer.
A noite mal dava p'ra descansar. Metidos nos regos do restolho e enrolados nas
mantas, a nossa ceia era pão duro que nem cornos e vá d'água p'ra inchar!"
- era o tio João a protestar.
Mas nem tudo eram tristezas, porque
ali se arranjavam namoricos. Embora os homens dormissem a um lado e as mulheres
a outro, às vezes até haviam encontros. E na noite de S. João as mulheres
preparavam um beberagem de aguardente com água, açúcar e casca de limão, e vá
de cantar e dançar:
Nem a ceifa custa
Nem o calor do verão
O que custa é a magarça
O que pica na mão
Coitado do ceifador
Vai para o campo a ceifar
Nem procura ao lavrador
Quanto é que vai ganhar
Cheio de alegria
Sempre de noite e de dia
Vou dizer esta poesia
Antes de romper a aurora
Grita o manajeiro:
Levanta-te ó cavalheiro!
Quando chegar o primeiro
A seguir vamos embora.
O que será da pobre mulher
Cheia de dor e paixão -
Diz ao comércio que espere
Que paga com outro grão
Hoje comemos beijos
Só a morte é que desejo
Tantos filhos com ensejos
Sem ter nada que lhes dar.
Manajeiro diga ao patrão
Que tenha dó da escuridão
Que se lembre do futuro.
Há muita gente doente
Com o sofrimento no dente
Derivado do pão duro.
Ai, ai ai
Eu bem sei o que isso é
Aqui não há lavagem de pés
O rancho já foi melhorado -
Mas nós estamos quinze dias
atrasados
Lá p'ró pé do sol posto
Dá pena e dá desgosto
Ver tanto desgraçado
Lá por cima das paveias
Enfiando nas goelas
Bocados de pão molhado.
Ó Salazar, vem acender a candeia
Vem ver o pão que o cavador tem p'rá
ceia.
Não há peneiras, foi mal fabricado.
P'ra se partir, precisamos dum
machado
(Monarca Pinheiro, Acêfas, Jornal Terras do Cante).
Da arte tradicional de versejar à literatura de um grande criador, o quadro
da ceifa é-nos dado por Vergílio Ferreira, no romance Aparição, como grito de alerta e de esperança relativo ao homem do castigo, o homem alentejano
vergado à força da natureza, ao verão tórrido do Alentejo e ao poder dos
patrões, os latifundiários terra-tenentes:
- Mas, então, agora ficam pela
herdade?
- Ouça uma coisa, doutor: vá lá um
dia destes.
Valeu? O doutor nunca viu uma
«acêfa»? Arranja-se lá uma jantarada, está lá também a Sofiazinha...
(...) E após o almoço, parti.
Atravessadas as duas passagens de nível, a planície submerge-me, alucinada de
fogo. A fita de asfalto dardeja, vagas de lume embatem-me no carro. É a estrada
do Redondo, onde a Cristina agoniza. Mas nada em volta relembra agora a sua
música, nesta hora estática de terror. Árvores das bermas olham-me a viagem,
paralisadas à praga do sol. Acelero a marcha na esperança de uma brisa, mas o
ar espesso arde como a massa liquefeita de um metal. Olho à esquerda, atento ao
desvio para a herdade, e ele surge-me enfim, escavado e poeirento. Balanço
agora entre um mar branco de searas que torram ao calor, sob a concha enorme de
um céu de zinco. Agora como nunca, uma condenação pesa em mim de solidão
ofegante, de blasfema aridez, nesta insólita marcha pela terra abandonada,
fervendo em silêncio, amadurando em suplício o grão da minha fome.
Eu o sinto sobretudo quando enfim chego à herdade:
diante de mim, em fila, como em marcha de penitência, homens e mulheres,
cosidos com a terra, ceifam uma seara. E na minha carne incendiada uma memória
antiga de uma fraternidade esquecida arde essa gente fulminada pelo sol. Mas
não vos traio, amigos, se outra aflição à espera se me levanta após a fome saciada. Que a justiça vos
redima, homens do castigo. E que, à sombra da paz que vos sonho e vós sonhais,
a minha aflição vos reconheça, para que a nossa fraternidade seja total. Que
direis vós então, que direis? Porque a vossa voz só agora vem do estômago, do
vosso corpo condenado, da miséria do vosso sangue de veneno. Mas que o vosso
corpo se cumpra e a vossa fome se cumpra. Não virá então o sono, mas outra
insónia e outra, a pálida vigília de quem espera ainda. Mas agora sois só os
escravos da maldição - maldição dos homens que se enojam de ter as vossas
tripas, os vossos ossos, e se revolvem a inventar-vos diferentes e se inventam
uma cumplicidade do céu, com deuses do seu partido, e da sua violência. Eu vos
amo até na vossa barbaridade, flor bárbara da vossa condição. Como
explicar-vos, porém, que, após a vossa justiça clamorosa, há outros gritos
abaixo da saciedade, sob a redenção futura da vossa humilhação? Sede bons,
amigos, sede compreensivos. A fome da nossa condição não se esgota num estômago
tranquilo...
Alfredo irrompe de um portão, com um
vasto chapéu de palha. Eu quedava-me no carro, à sombra de uma azinheira,
olhava ainda o suplício dos ceifeiros. A meu lado, um rapazinho guardava a
bilha de água tapada com uma concha de cortiça, o cocho, e que ele levava aos
homens ou aonde eles vinham beber.
- Então ficou aqui, doutor?
- Olho isto, olho isto...
Endurece-me a garganta, amaldiçoada
de secura, o ar cintila em faúlhas, queima-se-me o olhar nesta praga de aridez.
Quebrados pelos rins, os homens ceifam sempre. Sinto-me nas suas mãos, nos seus
ouvidos, na sua língua, um mundo de arestas, calcinado, esgazeado de sede,
crepitante de bichos de metal, fulminado de cólera e de blasfémia.
(...) Fui ainda ver a ceifa e o seu
suplício. Mas o que era aí doloroso só o vejo bem agora, revertido à verdade
antiquíssima e original que tacteio nesta procura nocturna. E pela tarde
jantámos ao ar livre. A noite descia, a terra atirava baforadas de forno.
Alguns homens ficaram ainda, Alfredo pediu-lhes que cantassem.
- Deixe-os lá - sugeri.
- Eles gostam.
- A gente gosta.
Eles gostam... Gostais como? Que
logro procurais nessa música resignada? Ninguém vos sonha assim, ninguém dos
que vos sonham o futuro. Reconhecer-vos-ei nesse sonho? Plácida, a planície
adormece, lavrada ainda dos restos de calor. Numa linha longínqua, a Lua sobe,
como uma mão final. Pelos campos rasos e crestados alastra o coro dos ceifeiros
à procura de um eco (Vergílio Ferreira, Aparição).
De tal maneira a ceifa era um trabalho penoso e de escravos
que a maioria dos escritores que escreveram sobre o Alentejo o descrevem, não
resistindo a dar-lhe as cores do terrível. Manuel da Fonseca é o último exemplo
que apresento:
O manajeiro olhou para o relógio.
Películas de poeira reluziam no ar. A labareda do sol derramava-se sobre as
espigas amarelas e era uma brasa viva nas costas dos ceifeiros. Vergados em
dois, latejava-lhes na cabeça o zumbido doloroso de mil cigarras.
Sobre o cabeço o manajeiro olhava o
relógio. Autómatos, os homens lançavam a foice. Cabeças tombadas, bocas
abertas, barbas crescidas, pingando suor. Suor amargo na boca e nos olhos,
escorrendo entre a pele e a roupa, empapando tudo. Um formigueiro a borbulhar
da testa e a foice ia e vinha.
O manajeiro olhava ainda o relógio.
A cada pulsação rebentava uma chama nos olhos dos ceifeiros. Já não sentiam. Só
a sede escaldante a congestionar-lhes os ouvidos. Esticavam as pernas, levados
na ânsia de não caírem, de não baterem de vez com a cabeça nos torrões duros.
Muito devagar, o manajeiro guardou o
relógio. Alguns ceifeiros levantaram um pouco o tronco. E, ao darem com os
olhos no raso da seara, entrou-lhes pela vista aquele amarelo de lava
derretida. Ficaram, por momentos, cegos, de cara enrugada, dentes à mostra.
Então, o manajeiro levantou o braço.
Os homens caminharam para as duas azinheiras, únicas sombras que havia perto.
Os que primeiro chegaram sentaram-se, encostados aos troncos das árvores. Os
outros procuraram ter a cabeça fora da acção do sol.
Valmansinho foi o último a chegar.
Veio todo o caminho dobrado, na mesma posição em que ceifava: com os braços
caídos, as mãos a roçarem pelo chão. Respirava a custo, de olhos fechados, o
corpo mole, achatado. E os torrões amarelos bebiam-lhe sequiosamente as bagas
de suor (Manuel
da Fonseca, Cerromaior).
A consciência de explorados dos ceifeiros levou o mesmo Manuel
da Fonseca a escrever esta passagem:
Os ceifeiros pareciam estar
sozinhos; faziam um círculo, alguns de costas voltadas para o monte, e iam
desfiando quadras. Cada vez mais, eram uma voz uníssona derramada para a
planície. Longe, o Castelo de Cerromaior aparecia retraçado à claridade da Lua.
De novo, Milhano ergueu a voz poderosa: Ceifeiro que enches o celeiro/de pão
até ao telhado/, Logo, muito alto, o coro rompeu, acompanhando, unânime:
Ceifeiro que ficas sem pão/depois do trigo ceifado!... (Manuel da Fonseca, Cerromaior).
O fim da ceifa tinha a sua atmosfera de grandiosidade quer para os
lavradores, quer para os ceifeiros. Era o momento da esperança pela tarefa
cumprida e pela promessa da aplicação dos proventos, para ambos, lavradores e
ceifeiros, a paga pelo aventura da seara :
Agora, que a ceifa terminara, a terra calva parecia de novo sulcada pelos
dentes do arado. Estava tão áspera que feria os pés e os olhos. Os ratinhos
desciam os montes pela última vez nesse Verão. Era um refluxo lento e pesado.
Nos campos vazios, onde o último poente largava uma mancha vermelha e porosa, a
brisa joeirava os flocos de pó, mas nem ela conseguia romper o silêncio que
ficava para trás e que dormia sobre todas as coisas. Semanas antes, dias antes,
existia também esse silêncio, mas através dele pressentia-se o murmúrio doce da
seara. Ainda ficavam aqui e ali restolhos de trigo, espigas caídas, margaça espezinhada,
mas era uma desordem já imóvel e espectral.
À noite, o lavrador Cortes juntou os ranchos da ceifa e distribuiu a
últimas férias, com uma larachas condescendentes à mistura. Nesse dia, sabia-se
que se podia rogar pequenos favores aos donos das terras. A tradição
obrigava-os a mostrarem-se generosos. Reunidos às dezenas no pátio da casa, com
as faces rígidas e indiferentes retalhadas de sulcos, máscaras de madeira, o
conjunto desses ranchos era um painel temível. Os lavradores nem saberiam dizer
porque não gostavam de os ver assim aglomerados. Nos longos invernos de falta
de trabalho, bastava muitas vezes esse espectáculo de um rebanho sombrio para
impressionar os donos das terras. No fundo eles sentiam a misteriosa força e
nobreza dos oprimidos (Fernando
Namora, O Trigo e o Joio).
A obra de Silva Picão, Através dos Campos, nos capítulos, “Os
Ratinhos” (VI) e “Searas” (VIII), e no sub-capítulo “Ceifas”, é um manancial de
informação, pois nela encontramos descrições fiéis da realidade das ceifas, bem
como de todos os trabalhos a elas associados, tais como, e cito: ceifas por ratinhos, ceifas por mulheres, a
atada, enrilheiração e enrilheiradores, acarretos, pessoal dos acarretos,
preceitos e usos, no rastolho e em marcha, fundas por carrada, eiras, debulhas,
etc.
Debulha - Junto de cada eira nota-se geralmente um espaçoso
sombracho...
Diz-nos Silva Picão que O local onde
se debulha e limpa a seara ou searas de todo e qualquer género, chama-se eira.
A superfície ocupada por uma eira, dimensões e preparo (...). Eiras circundadas
por terrenos de rastolhice ou pastorrais, costumam ser defendidas por um aceiro
largo e bem feito, que evite ou dificulte invasões de incêndios (o aceiro
consiste em uma faixa de terreno limpo contornando toda eira, na largura de
oito a doze metros. Prepara-se por meio de lavoura e gradagens, ou raspando-se
o terreno à enxada, de modo a ficar nu, em condições de interceptar qualquer
fogo que possa vir dos arredores).
Para facilitar acarretos, é
frequente haver mais do que uma eira em cada lavoura grande, funcionando todas
simultâneamente ou cada qual por sua vez. Em regra, a eira fica a uns cem
metros do monte para onde se recolhe o grão, ou donde vai a comida destinada ao
pessoal.
(...)As debulhas Podem
principiar entre Maio e Junho, quando por ventura se precisa recolher géneros
para rações de gado e fabrico de marrocates (pães de centeio). Semelhantes
apertos, obrigam a debulhas prematuras, restringidas em todo o caso, a pequenos
calcadouros de cevada e a quaisquer machocas (pequenos lastros de centeio que
se malham e limpam excepcionalmente, a fim de se farinar e panificar em
seguida) de centeio. São colheitas antecipadas, e como tais, por vezes, sofrem
contratempos, de chuvas copiosas que prejudicam e empatam o despacho ambicionado.
Por isso só se fazem excepcionalmente, por necessidade absoluta.
Mas elas só verdadeiramente começam
(...) a valer e sem interrupção de maior, na primeira semana de junho tendo a primazia as favas e a
seguir a cevada e o centeio. O trigo entra em cena no mês de julho e a aveia
reserva-se para o fim da época, já em agosto, no propósito de, entretanto,
comerem dela, nos rilheiros, as éguas da debulha, as muares dos acarretos, a
besta da água e alguma rez franca.
Quanto ao sistema de debulhas
usavam-se quatro:
primeiro, a patas de éguas manadias, em cobra; segundo, por meio de
trilhos; terceiro, a mangual, por malha braçal, com homens vigorosos; quarto, à
máquina debulhadora, movida a vapor.
A descrição, por Silva Picão, dos procedimentos destes sistemas de debulhas
é exaustivo, debulhas que acabam na recolha e medição do grão que passamos a
referir: Tanto nas debulhas por éguas
como nas que se efectuam à máquina e até nas das malhas, os cereais debulhados
são, por via de regra, medidos e ensacados de vez no sítio em que se limparam,
seguindo depois em carros para os celeiros ou caminho de ferro. Mas em muitas
ocasiões, procede-se de outra forma. O grão medido e ensacado, em vez de sair
para o seu definitivo destino, é apenas removido para um local próximo, dentro
da eira, onde se despeja dos sacos e onde se vai acumulando em montão ou
montões, que dia a dia aumentam de volume. Cada montão desses, chega a
representar dezenas de moios, assim expostos à soalheira durante dias e dias.
Por dois motivos se explica este
uso: ou porque o vagar dos carros é pouco para acarretos distantes que se podem
adiar, preferindo-se outros que mais imperiosos, como os da seara em rama, ou
porque estando o grão úmido, precisa de sol e de ar até se pôr enxuto e
ressequido. Nem em condições opostas se deve enceleirar, sob pena de
fermentações desastrosas, que mal se remedeiam. Trigos, centeio, cevada e
aveia, tudo precisa enxugar bem, antes de recolher. E as cevadas mais do que os
outros géneros. Por enxutas que pareçam é de boa prudência pô-las ao sol por
muitos dias, a apanharem as ressolanas de julho ou de agosto, como preservativo
eficaz contra a ponilha e o gorgulho.
Quanto às medições Fazem-se com o decalitro quadrado e ainda às vezes
com o antigo alqueire, desde que se não trate de vendas ou pagamentos. Nos
cereais, quer se empregue a medida decimal, quer se adopte o velho alqueire o
uso corrente no termo de Elvas é medir-se “de raso”, sem exceptuar a aveia, que
noutras regiões vai de cogulo. Nos legumes, usam-se os dois sistemas,
prevalecendo o de cogulo e no alqueire o de raso no decalitro.
Na secção O apuramento final – No levante da eira –
Cachos e varreduras, Silva Picão completa o quadro: Aí pelos meados de
Agosto, as debulhas estão de resto, prontas ou quase. Mal se aprontam, trata-se
do levante da eira, que é como quem diz do aproveitamento do grão, que escapou
à debulha ou à limpesa. Escapa sempre, mais ou menos, conforme os cuidados do
pessoal, o processo e a execução da debulha, a preparação da eira, etc. Assim,
neste propósito de aproveitamento radical, a moinha dos trigos debulhados à
máquina, passa-se ao vento e desse trabalho resulta apurar-se quase todo o grão
escapado à limpesa primitiva. Os cachos (fragmentos de espigas) que saem ao
ancinho quando se limpam os montões das debulhas por éguas, são afinal
debulhados juntos no fim da época, dando origem a um derradeiro calcadouro.
Antigamente o trigo apurado deste calcadouro era, em geral, aplicado ao fabrico
do pão caseiro da lavoura. Da debulha do centeio por éguas ou a manguais,
retira-se e junta-se uma considerável porção de espigada “por fazer” ou “mal
feita” que é por último repisada ou batida de novo, dando ainda um rendimento
de apreço. Enfim, dos assentos dos rilheiros e das varreduras finais da eira, também
se recolhe tanto ou mais grão, que da espigada ou dos cachos. A limpesa
simultânea dos ”cachos e varredurras”, constitui o derradeiro serviço das eiras
dos trigos e do centeio. É em geral serviço de um dia, que se faz a rigor e
escrúpulo, para se aproveitar quanto possível, o que tanto custa a criar. É
neste aproveitamento cuidadoso que se funda a conhecida locução popular
alentejana: Fulano, ganhou tanto, fora “cachos e varreduras”(Silva Picão,
Através dos Campos).
Capela e Silva entrega-se a uma descrição das debulhas em que as máquinas
debulhadoras têm um papel preponderante, reproduzindo com evidente naturalismo
a linguagem dos ganhões:
Em cada herdade, em cada gleba, surgem as eiras. Primeiro uma, depois
outra, depois tantas que não se podem contar. Eiras monumentais, a dominar a
planície, outras que lembram as choças de ganadeiros.
Aparecem os primeiros aparelhos de debulha puchados a parelhas de muares,
ou juntas de bois.
Quando passam nos povoados é um alvoroço. Vem tudo à rua ver as máquinas e
a família. Os ganhões ante tantos olhares, sentem-se outros, como que
despertam; os carreiros escarranchados nas muares arreiam o gado acelerando a
marcha, e o maquinista vestido de ganga, e inchado de mando, sai do coice e
posta-se a um lado a comandar. Os espectadores acompanham com olhares de
admiração o cortejo. Chovem os comentários.
-
“É a
mánica do lavrador que vai começar a debulha. Ah! Oh!... Enquanto se
despachou!?
-
“Grande
bicha!... É Claita! Esta é a que parte a boia por aqui muito longe! Que o
maquinista tanto... como tanto... mas mais alquitete não quero que haja!”
(...) Nas eiras dos seareiros vai azafama intensa. Os trilhos e as cobras
volteiam velozes como nos circos. Depois quando um rabo de vento o permite, é a
faina de desempalhagar o calcadoiro, e por fim o padejar o cereal . Mede-se
finalmente o pão, e quantas vezes o seareiro esfarrapado, com o gado a cair de
fome, fica sentado nos sacos, de cabeça entre as mãos lastimando a sua triste
sorte.
(...) As máquinas chegam à eira. Dir-se-ia que a viagem foi de muitos dias
e tormentosa. Os homens e o gado, estão cobertos de pó, e de suor. O maquinista
sempre ansioso por aquele dia, para exibir a sua arte, dá vozes de comando.
“- Descarreguem a bagagem! Oh! Maioral! Traga lá a parelha pimpôna pr’amor
de alinharmos as máquinas!”
Engatam a parelha do maioral das mulas à debulhadora. Os animais como se
tivessem a noção das proporções
estão inquietos, nervosos. A querer arrancar. O carreiro lança impropérios.
(...) O maquinista faz calar o apito; abre as torneiras de purga; pucha a
alavanca; e põe a máquina em movimento. Ouve-se um bater sêco, depois o zumbido
ou urro sonoro a aumentar, a aumentar sempre, até ficar em nota monstruoso,
firme, produzida pelo rodar vertiginoso do batedor. A locomóvel apita novamente. É o sinal da
agarra. Os homens sôbre o rolheiro agitam-se, e imediatamente fazem voar os
molhos de pão, cordão contínuo que, depois de passar pela foice, o alimentador
faz entrar na máquina. Lá dentro parece que há luta infernal. A lei da densidade
sobressai, impera como verdade palpável, e a palha sacudida, vaporisada quási,
escôa-se pelo fagulheiro, abandonada pelo ouro em grão que cai nos sacos, a
cantar.
Mede-se logo o cereal, ou contam-se os sacos, com o auxílio do quadro da
medida com as duas cravêlhas seguras por cordéis, uma para os moios, a outra
para sacos ou decalitros, que vão mudando com a contagem. Medidos oitenta
decalitros – um moio – de aveia ou cevada, ou quarenta de trigo ou centeio,
rende-se o alimentador. O que deixou o trabalho vem extenuado. A cara vem tão
negra como o peitoral, os olhos a brilhar no fundo escuro, parecem os de um
doido alucinado; o suor pegou-lhe a camisa ao corpo, e pelo andar adivinha-se
que a energia estava por pouco. Vai descansar para o sombracho (J.A. Capela e Silva, Ganharias).
O trigo solto ou ensacado, em carros de muares, era depois levado para os
celeiros onde o guardavam:
Segundo Silva Picão, os celeiros Divergem muito em número e
capacidade. A lotação dos maiores não vai além de duzentos moios. Localizados
ao rés-de-chão ou em altos, o seu piso é de tijolo ou asfalto. O asfalto
introduziu-se há uns vinte anos, sendo decerto o melhor sistema para a boa
conservação dos géneros.
Os antigos silos(círios) ou tulhas subterrâneas abertas nas cercanias dos
montes para depósito de cereais, suponho já não existirem em nenhuma herdade do
Alentejo. No concelho de Elvas têm-se encontrado vestígios bastantes dessa
usança árabe, ainda em voga há poucos anos em algumas terras de Espanha (Silva Picão, Através dos Campos).
Mas foram os grandes silos da EPAC, construções cilíndricas de grandes
dimensões (que ainda hoje perduram) que marcaram a paisagem das vilas e cidades
alentejanas que, a partir dos anos cinquenta, se tornaram os grandes celeiros
do trigo alentejano.
Moagem – Não há maior amigo que Junho com o seu trigo
Como referimos no princípio, citando um estudo de Rui Arimateia, as
técnicas de moagem são antiquíssimas e, no que se relaciona com o território
que é hoje o Alentejo, essas técnicas remontam aos romanos e devem muito aos
árabes.
As técnicas de moagem mais utilizadas no Alentejo foram os moinhos de
rodízio e os moinhos de vento (também foram usadas as azenhas, mas o seu uso
foi menos significativo), tendo caído, progressivamente, em desuso, a partir da
introdução em Portugal das fábricas de moagem (finais do século XIX e toda a
primeira metade do século XX).
Moinhos de Rodízio
Citando Rui Arimateia, Estes aparelhos são construídos junto de ribeiros
(ribeiras e rios) e levadas, sendo a água conduzida por um canal estreito de maneira a fazer passar a corrente
ou um jacto de água pelas pás ou penado do rodízio do moinho. Nestes moinhos, a
característica mais saliente é o eixo vertical e o rodízio horizontal e
paralelo às mós. A água, ao bater nas penas, fá-las girar e com elas o eixo e a
pedra-mó andadeira a que este está ligado. A cada rotação do rodízio,
corresponde uma rotação da andadeira. A mó fixa é perfurada, a fim de dar
passagem ao veio do eixo.
Subsistem ainda entre nós, alguns deles em laboração, sendo o seu número
superior ao das azenhas, devendo esta superioridade numérica ficar a dever-se
ao facto de serem mais simples estruturalmente, baixando o custo da sua
manutenção, e também porque é necessária uma menor quantidade de água para os
fazer mover.
Os moinhos de
submersão nossos conhecidos, nomeadamente do Rio Guadiana, são uma variante
deste último tipo em que o rodízio gira submerso dentro de poços perfeitamente
circulares, onde toda a água é animada com um rápido movimento de rotação (Rui Arimateia, Tradições da Moagem).
Moinhos de Vento
Continuando a citação, É principalmente na parte
sul do país, onde durante um período mais ou menos longo do ano, a falta de
água se faz sentir, que os moleiros costumam substituir a energia hídrica pela
energia eólica.
O Moinho de vento mais comum entre nós é o denominado moinho de torre,
construído de pedra ou terra batida e de cúpula ou capelo giratório. Estes
moinhos apresentam o eixo atravessado por quatro pares de vergas que sustentam
quatro velas triangulares.
Muito mais tardios, na indústria moageira europeia, que os seus congéneres
movidos pela energia hídrica, os moinhos de vento só aparecem no mundo cristão
a partir do século XII, como consequência das Cruzadas, encontrando-se as primeiras
referências documentais na Península Ibérica a partir do século XII. Em termos
de técnica e de modo de funcionamento, não se deram alterações de monta, desde
a Idade Média até aos dias de hoje.
Referindo Armando de Lucena, citado por R. Arimateia, O corpo do moinho
é cilíndrico, e rematado por uma cúpula de madeira que pode voltar-se como um
catavento em busca da nortada que é, afinal, a única fonte da sua vida, toda a
palpitação do seu organismo. Do andar superior sai a longa armação das velas. Quatro
hastes de madeira irradiam de um eixo central que durante o movimento transmite
energia recolhida ao engenho interior, girando inversamente, reduzem a pó toda
a semente das searas, em redor (A. Lucena, 1944).
Para Jorge Dias, Veiga de Oliveira e Fernando Galhano, também citados por
R. Arimateia, Em períodos de vento regular, um moinho com velas de bom
tamanho pode moer mais de trinta quilos de cereal por hora e por mó, o que é
uma produção de certo modo economicamente razoável, se se atender sobretudo à
ausência de gastos com a força motriz. A grande fraqueza desta actividade é,
porém, a incerteza e irregularidade do vento, que não só diminui a produção
diária, mas sobretudo afasta a freguesia, e que se pode considerar de regra,
atenuada apenas em certas épocas de ventos mais certos, e em certos locais,
especialmente bem expostos (Jorge Dias, Ernesto Veiga de Oliveira, Fernando
Galhano,1959)
Os
Moinhos do Rio Guadiana
Segundo o estudo de Rui Guita sobre Os Moinhos do
Guadiana, O
último século antes de Cristo foi, pelo menos para algumas regiões, a época de
chegada da moagem com energia hídrica à Europa, vinda de oriente. Este pormenor
é conhecido através de alguns autores antigos e, entre eles, por Antípatro de
Salónica, que compôs aquele que é, provavelmente, o poema mais citado em
literatura sobre molinagem, porque se lembrou de versar as nifas aquáticas que
vieram accionar as rodas do moinho e libertar as mulheres desse trabalho.
A
prensença romana na região (Alentejo) é o primeiro momento para o qual existem
vestígios conhecidos da utilização local de energia hidráulica em engenhos
rotativos de moagem. A introdução de moinhos e outros engenhos movidos a água
data desta altura, se não for anterior. Se eles foram largamente utilizados a
partir daí, como parece verosímil, ou se permaneceram subaproveitados como
tecnologia, é uma questão de resposta arqueológica. Conhecido é o facto de as
regiões mediterrânicas terem tido acesso à generalização da moagem hidráulica
muito antes das regiões atlânticas da Europa. Enquanto a moagem de cereais em
moinhos de água não se generalizou senão pelos séculos X e XI por toda a Europa
atlântica, no século IX, estabilizadas as condições da presença muçulmana, os
engenhos hídricos já se encontravam dessiminados por toda a fachada sul da
Península Ibérica, sendo utilizados para moer cereais, minerais, pasta de
papel, cana de açúcar, azeitona, etc., para pisoar a lã, para elevar água, para
serrar madeira, enfim, para todos os usos possíveis e desejáveis. Quando os
conquistadores avançaram para o Sul de Portugal já encontraram os moinhos a
trabalhar instalados nas suas sessegas, virtualmente o mesmo conjunto que
encontramos hoje.
Durante
os últimos séculos o Guadiana, e os seus afluentes tiveram um papel fulcral no
abastecimento dos habitantes da bacia. A actividade económica predominante foi sempre
a cerealicultura e quase todos os grupos domésticos basearam a sua subsistência
num ciclo, de grande autarcia, de produção, transformação e consumo do trigo.
Os moinhos de água preencheram uma boa parte das necessidades de farinação
destas populações até meados do século (XX).
Desde
o momento em que as cheias invernais baixavam o suficiente para que os moinhos
funcionassem até àquele em que o estio secasse completamente a escorrência, os
moinhos estavam ao serviço dos donos da moagem, dos consumidores e do
carregadores que vinham das zonas periféricas da bacia, até trinta ou quarenta
quilómetros de distância, trazer cereal e levar farinha. Quando a distância a
percorrer era grande o processo levava pelo menos dois dias. Implicava um dia
de deslocação em carro de tracção animal até ao rio, pernoitar nas margens
junto ao moinho escolhido e, caso o movimento fosse de tal ordem, que
permitisse moer tudo durante a noite, sair na manhã do dia seguinte para a
viagem de regresso. O modo corrente de pagar o serviço ao moleiro, que podia
ser dono do moinho, seu rendeiro ou então trabalhador assalariado, era a
extracção da maquia, uma percentagem da farinha moída oscilando entre 5 e 15%,
consoante a situação e a época.
Foi
comum uma forma de exploração dos engenhos de moagem que procurava ultrapassar
a sazonalidade dos caudais hídricos e obrigava os moleiros a movimentos
pendulares entre vários moinhos: em muitos casos, os moleiros que exerciam a
sua actividade no Guadiana transferiam-na para um moinho de água nas ribeiras
durante os períodos de cheias, mantendo assim o serviço aos clientes e
aumentando os rendimentos profissionais. Sucedeu também, com frequência, um
movimento pendular entre moinhos de água e moinhos de vento, efectuado quando o
caudal se tornava demasiado diminuto para moer. Assim que o rio e as ribeiras
apresentavam de novo caudal suficiente os moleiros reiniciavam a laboração dos
moinhos de água, muito mais fiáveis devido à capacidade
de funcionarem continuamente.
A
área de Alqueva mostra alguma diversidade nos modos de construir edifícios para
captar e utilizar energia hídrica assim como nas soluções técnicas usadas para
transformar a passagem da água em movimentos mecânicos úteis. Os edifícios
serviram quase sempre para albergar moagens de cereal mas também foram criados
alguns para serem utilizados como pisões, lagares e, eventualmente, como
moinhos de qualquer outra matéria prima que não o cereal.
A
forma dos moinhos varia com os três tipos básicos de cobertura usados:
encontramos azenhas de cobertura temporária, moinhos de abóbada e moinhos
telhados. As azenhas, cujas ruínas podemos encontrar no leito do Guadiana mas
que não aparecem nos afluentes, foram instalados em socos de pedra argamassada
com planta quadrangular, em cima dos quais era instalada uma cobertura
temporária de materiais vegetais para abrigar o moleiro e a moagem, totalmente
montada e desmontada no início e no fim da época de laboração. Só a mó ficava
no moinho, arrumada no cabouco ou bem presa.
Os
moinhos de abóbada aparecem com grande profusão no Guadiana e também nalguns
afluentes principais, como no Alcarrache e no Degebe. Foram construídos em
pedra e argamassa de cal, normalmente em tijoleira também, principalmente nos
vãos das aberturas e na abóbada, totalmente rebocados com argamassa por dentro
e por fora, criando um espaço interior permanente onde funcionavam as moagens.
São construções extraordinariamente resistentes e climaticamente confortáveis,
representando um pico de capacidade técnica e económica investida nesta forma
de aproveitamento. Podem ter apenas uma linha de farinação ou expandir-se para
o meio do rio, contendo até cinco, seis ou sete moagens ao lado umas das
outras. Alguns destes moinhos não têm propriamente uma abóbada, uma vez que o
vão interior foi coberto no sentido do eixo menor com grandes lages de
xisto unidas por argamassa de cal, naquilo que se pode chamar, sem forçar a
expressão, uma obra de cariz megalítico.
O
terceiro tipo de construção aparece predominantemente na parte superior da
bacia dos afluentes e não ocorre no leito do Guadiana. São edifícios com
grossas paredes de pedra unida por argamassa de cal ou de argila, cobertos com
telhado de telha e caniço sobre vigas de madeira. Foram construídos apenas nas
zonas em que o stress hídrico é fraco e o caudal de cheia normal não é
suficiente para cobrir o moinho, ou seja, apenas em troços com caudais
diminutos ou vales abertos.
Tal
como existem três tipos básicos de moinho nesta zona podemos também distinguir
três tecnologias de captação de energia hídrica. As azenhas, na comum acepção
da palavra, utilizavam rodas de captação verticais com impulsão inferior para
movimentar uma ou duas mós, normalmente uma. Nesta solução o movimento tem de
ser transferido do eixo horizontal da roda para o eixo vertical da mó através
de uma entrosga.
Os
moinhos de rodízio, os mais comuns, utilizavam uma roda horizontal com penas
radiais que é impulsionada com um jacto de água e cujo movimento rotativa é
directamente transmitido à mó pelo eixo vertical. Representam a tecnologia mais
comum nos afluentes e aquela que foi também a mais generalizada no Guadiana
antes da introdução, datada do século passado, dos moinhos de rodete.
Os
moinhos de rodete surgem principalmente no Guadiana e constituem ao mesmo tempo
um aperfeiçoamento e uma adaptação a condições particulares no meio ribeirinho.
Quando, devido ao aumento demográfico e, consequentemente, das necessidades de
farinação, o investimento em novas linhas de moagem se tornou atraente, a
criação de novos moinhos e também de
novos escalões de aproveitamento, teve lugar em vários locais da bacia.
A proliferação de novos açudes e o alteamento dos
existentes para
maximizar a energia disponível provocou muitas vezes a compressão dos desníveis
dos aproveitamentos a montante, reduzindo-lhes a operacionalidade. A solução
aplicada para solucionar o problema foi, em muitos casos, a transformação dos
rodízios em rodetes. Como os rodetes funcionam dentro de um poço, como
turbinas, maximizando assim a energia captada, isto permitiu manter a
funcionar, mesmo com um desnível mais reduzido, moagens afectadas pela subida
dos desníveis do açude a jusante (Rui
Guita, Guadiana
Alqueva, Os Moinhos do Guadiana).
Eis três testemunhos de dois
moleiros e um filho de moleiro, ainda vivos, mas não activos, que mostram o que
foi a vida nos moinhos ainda nos anos cinquenta do século XX:
Mestre Venâncio, moleiro do Guadiana,
MontesJuntos
O Mestre
Venâncio é um homem com oitenta e cinco
anos - o que não é brincadeira - e nasceu num moinho do Guadiana, ou não fossem
já os seus pais moleiros e ele não ganhasse e gastasse a vida no rio.
Na Moinhola, ali
é quê nasci e me criei e tinha cinquenta anos quando de lá abalei. De manêras
qu’inda vim aqui p’ra cima p’ra mais um ou dois e fui sempre à roda do
Guadiana. Naquele tempo toda a gente semeava, toda a gente fazia uma seara,
toda a gente tinha sementes - era trigo, era aveia, cevada, toda a qualidade de
semente se moía ali. De manêras que havia fulanos, os maquilões, qu’andavam à
maquia, tinham carroças e chegavam ali e descarregavam e no outro dia abalavam com a semente feita em farinha. Tiravam um
certo desconto - um saco de cinquenta ou sessenta quilos - e era a paga. Eu
andei até à sociedade com os próprios donos da fazenda e então quanto mais
trabalhava mais tinha; era à percentagem, e então eu ganhava um tanto fora
parte que eram aí cem quilos de farinha, qu’era p’ra dar p’ró gasto da casa,
p’rá família.
Quando vinha o
inverno, aquelas grandes cheias que tapavam d’água os moinhos, então íamos p’ra
outros ribeiros mais pequenos, p’ró Lucefecit, p’rós moinhos à roda de Terena.
De luto por morte da mulher, já
há dez anos, este viúvo não o é só por isso, vê-se-lhe no rosto comido uma pena
nova que as palavras não escondem.
A
farinha de cevada, centeio, aveia, isso era p’ró gado - engordava os porcos
como se fosse boleta, e p’ró gado vacum. A de trigo era peneirada e o farelo
era para dar aos animais à mesma, p’rás parelhas de mulas, bois de lavra, e
atão aquele gado comia muito disso. Atão o gado comum p’ra comer a palha tinham
que lhe pôr uma pouca de farinha por cima, senão não a comia bem. Farinha de
trigo todos tinham - uns compravam uns tantos quilos de trigo e mandavam fazer
a farinha de saco, depois em casa peneiravam, amassavam, tendiam e enfornavam,
p’ra fazerem o pão. O pão era melhor do que é hoje, era de trigo e agora nã
sabemos. Era pão c’a gente aguentava nos tabuleiros - tapado com um pano -
quinze dias sem embolarentar, porque era pão verdadeiro, feito com massa azeda.
De manêra que assim é que foi a vida.
Vê-se-lhe nos
olhos, dizia, o cantar do rio correndo debaixo do moinho; nas mãos, a música
das mós moendo, e é fácil imaginá-lo, enfarinhado, enchendo a sacaria.
Com
o pãozinho fazíamos aquelas caldeiradas com peixes, que aquilo tínhamos ali a
colhêta em casa, eles andavam até debaxo
da gente. Os moinhos a moer e a gente a vê-los passar. Era moleiro mas também
era pescador. Tinha um barco - ainda lá está à sombra dum salgueiro - e com a
tarrafa e os tresmalhos, remando duma margem p’rá outra, aquilo vinham bogas,
bordalos, barbos, carpas. Ainda vendi algum pêxe, mas era mais p’rá família. Às
vezes na margem do rio fazíamos um sombracho com ramadas de freixo, com buinho,
e aquilo fazia-se ali uma sombra boa e ali é que era até desmaginar. Às vezes
tínhamos um agarrafão ao lado, ainda não tínhamos acabado aquele já estava a
chegar outro. Em tempos não o acabava, andava pensando c’o acabava e não o
acabava - cheguei-lhe bem. Os tais maquilões traziam vinho p’ra provarem a
caldêta de pêxe. Juntavam-se dois: vamos embora, temos que levar um agarrafão.
Muitos levavam até as mulheres. Ê mesmo, depois que casei, tive-a lá sempre.
Que alegria, ó
mestre Venâncio, desafiar a vida tecida nas agruras do destino.
Tive
oito filhos - a minha senhora, pois -, todos nascidos ali, sete raparigas e um
rapaz; tenho aqui duas em Montejuntos, os outros estão lá p’ra Algés, Carnaxide
e em Évora - uma morreu-me com quarenta anos. Netos já são p’rái uns doze, e
bisnetos já tenho dois. Mas olhe que agora a produção dá em ser menos. Ê
sozinho arranjei tantos como eles todos juntos.
Mas se há alegria no falar do
mestre Venâncio ela está envolta numa mágoa que a saudade acalma.
Todos os moinhos tinham uma casa de retiro, p’ra despejo,
p’ra quando o Guadiana enchia. Algumas coisas principais metiam-se lá - os
sacos tinham que se arrecadar debaixo de telha. Um ano a cheia foi tão grande
que tive de ficar d’atalaia a ver se a água nã chegava ó galinheiro.
A gente
lembra-se sempre - bons bocadinhos que a gente passava ali na rebêra com aquela
espanholada. Atão aquilo, já se sabe, ali é que sentiam farinha - quando foi da
guerra. O moleiro estava
sempre comprometido com aquilo. Sabe, com tanta espanhola, às vezes a vida é
assim... Havia ali bons traços, rigular. E de fez em quando ia até Cheles.
Os
contrabandistas, quando era necessidade, ajudava-os a passar p’rá outra banda.
Eles davam-me qualquer coisita, era mais esse que vinha.
Meti o ti Venâncio no carro e,
pelo caminho, no calor do Verão de Abril, o sol queimava tanto, que lhe fez
lembrar uma quadra antiga alusiva às rezas que as mulheres faziam em tempo de
seca:
As
preces na igreja / Estão-me a convencer / Que a água longe que esteja / De
momentos vem cá ter.
É que o rio hoje é um dó, mal
corre, e o ti Venâncio ao olhá-lo quase chorou, em jeito de despedida, do rio,
quiçá da vida
(Toda a ciência do rio, Jornal Terras do Cante, Monarca
Pinheiro).
Tempos antigos do Moinho do Alcaide –
Monte das Mestras, Rio Degebe
José Polido Leal, de 68 anos, tractorista reformado,
residente em Reguengos de Monsaraz e José Abegão, natural de S. Manços,
residente em Évora, funcionário da CP. Vamos ouvi-los. Começou o Zé Leal por
contar as peripécias duma cheia que quase lhe arrasava a vida.
A água veio de repente e ê vou p'ra cima do telhado,
porque se não tivesse mais socorro nenhum, em cima do telhado podia-me salvar.
A água ainda estava a sair pela porta e enquanto ela saísse não tinha medo
nenhum.
Tinha uma pilha de dez sacos de trigo dentro do
moinho e estava em cima desses sacos de trigo, a água corria ao lado e havia
sacos com farinha. Uma farinha abalava, outra estava prá li já feita em lama.
Atão ô depois ê pus-me lá em cima e digo assim: nã, eu só abalo daqui quando a
água tapar aqui a porta. Eu já tinha ali uns espigões preparados p'ra rebentar
o forro do telhado, faço um buraco e vou p'ra cima do telhado. Quando a água
tapasse o telhado, mal da gente, tapava aqui estes cabeços todos.
Atão ô depois tive ali munto tempo, munto tempo, até
que ô depois a água foi abaixando lentamente. Isto foi em 1954 ou 1955, foram
as duas cheias maiores que houve aí, foi nessa altura. E atão ô depois o
pessoal estava cá de fora: Vá, vem, vem! Vem, vem, vem... e eu nada. Só quando
ela abaixou bem é que saí de cima do telhado. A água chegou a dar além quase ao
topo da varanda do monte.
A casa ali ao lado era a cavalarice e esta ao lado
era a casa do descarrego do trigo. O pessoal tinha que esperar que o trigo
moesse, uma noite inteira, um dia, dois dias, era conforme a freguesia e
quantidade de trigo p'ra moer. Vinha tudo em carroças. Os lavradores traziam
uma carrada de trigo e alguns vinham dormir ao moinho. Havia muitos lavradores,
tinham muitos gados, traziam, por exemplo, uma carrada de trigo hoje, tinham cá
uma de semente de mistura (trigo, cevada, centeio, milho), levavam a de mistura
e deixavam a de trigo; para a outra vez traziam uma de mistura e levavam a de
trigo — nesse tempo não havia trituradores.
O trigo cá no moinho, vinha um cliente trazia
cinquenta quilos, levava os cinquenta quilos de farinha, cinquenta não, porque
a maquia era à percentagem, quem trazia cem levava noventa e cinco. Era uma
miséria. A farinha com que eu ficava, depois vendia-a. Era daí que fazia dinheiro
para viver. E outras vezes andava a trabalhar de verão na acêfa, comprava um
saco ou dois de trigo àquele, depois vendia a farinha, depois tinha que
arranjar esse dinheiro para pagar o que tinha vendido. Isto a vida cá era
difícil...
Havia muitos meses no ano em que o moinho não
trabalhava, pelo menos, seis meses. Aí a partir de Maio, a maior parte dos
moinhos já não moía, já não havia água p'ra isso, conforme os anos.
O Degebe é um rio que só corre quando chove.
Antigamente por este tempo (fim de Fevereiro, princípio de Março) o rio estava
correndo sempre. Agora, o açude tem água porque fundearam o leito e tiveram a
sorte de cair uma trovoada no cedo, senão estava sequinho.
O trigo que a gente aqui moía vinha das várias
povoações aqui à roda: Vendinha, S. Manços, Torre de Coelheiros, S. Miguel de
Machede, N.ª Sr.ª de Machede, S. Vicente do
Valongo, Stª Susana, Montoito, Reguengos, Perolivas, corria-se isto tudo
aqui à roda. Havia outros moinhos, mas a gente tinha os nossos clientes que eram certos,
e atão gostavam do serviço, voltavam. E eu também tinha uma carroça, ia buscar
o trigo e levar a farinha.
Daqui para baixo até à ponte do Albardão havia quatro
moinhos e trabalhavam de noite e de dia; nos mais pequenos havia só um moleiro,
nos maiores havia o moleiro, o ajuda e às vezes a mulher do moleiro.
Dormia-se mal, umas horinhas em cada noite; enquanto
o moleiro passava pelas brasas, a mulher ou o ajuda punham trigo, ensacavam a
farinha. Um moleiro não dormia mais do que quatro horas por noite.
Às vezes chegava aí um cliente, dezia p'ra mim: Ah,
vamos lá ali beber um copinho e trazes-me os sacos de trigo. Íamos ali a uma
taberna e era de caixão à cova.
Tanta vez que eu cheguei já no outro dia. Vinha
carregado de duas maneiras, vinha a carroça e vinha eu. O animal já conhecia o
caminho tão bem que vinha sempre cá ter.
E terminou o Zé Abegão.
Foi aqui neste local denominado Moinho do Alcaide que
eu nasci a 29 de Outubro, do ano de 1937. Fui menino, fui jovem e fui moleiro
até aos dezassete anos, aqui neste moinho, na companhia dos meus avós e dos meus
pais que eram moleiros. Este moinho foi arrendado pelo meu avô no ano de 1915.
O meu pai esteve aqui trinta e nove anos, até ao ano de 1954, depois fomos
daqui para a moagem de S. Manços e lá estivemos, o meu pai até que ela encerrou
e eu até que fui para o Caminho de Ferro, com a interrupção do tempo que passei
pela vida militar.
O moinho do Alcaide fica
situado na margem direita do Rio Degebe, um pouco abaixo do sítio em que o Rio
recebe o seu afluente, Ribeira da Pardiela. É a partir daqui que este rio se
torna poderoso pelo aumento do seu curso de água, porque ele só corre na época
das chuvas; apanha o ponto mais largo do Rio Degebe, é um dos de melhor acesso
e o mais potente, porque só ele tem quatro casais de mós.
O Moinho é tapado a telhado;
os moinhos a montante são todos em telhado, a jusante, todos em abóbada. Era
menos trabalhoso nos seus tempos de laboração devido a estar no sítio mais
largo do rio em que a água levanta menos.
O moinho que fica a jusante,
o moinho da Parreira, quando a água chega à rua deste moinho, o outro moinho já
vai a meias paredes.
Este moinho também trabalhou
a rodísios, mas como a água noutros tempos era muita eles modificaram o moinho,
não se sabe quando.
A idade do moinho não a
sabemos. Quando o meu avô arrendou este moinho no ano de 1915, quando estava
com o meu pai, havia aqui um moleiro com muita idade e já não trabalhava, ele
contava-lhe uma história que tinha vindo de boca em boca: que no princípio da
dinastia Filipina este moinho estava em ruínas e o alcaide de Évora mandou-o
restaurar. Daí p'ra cá ele teria ficado sendo o moinho do Alcaide, de nome.
Este
moinho neste momento tem um segundo tamanho. O primeiro só tinha três casais de
mós e era mais estreito. Neste século o moinho foi do sr. Manuel Papança, de
Reguengos de Monsaraz, e como ele naquela época era dono do moinho dos Clérigos
no Guadiana, o maior do Guadiana, com dez mós, o que é que ele pensou: se eu
sou dono do maior moinho do Guadiana, também tenho de ser dono do maior moinho
do Degebe, e alargou-o (Monarca Pinheiro, Diário do Sul).
Velho costume dos moleiros era o de roubar quanto podiam no peso do trigo e
da farinha. Disso nos dá conta Silva Picão:
(...) Agora aparece o empoado moleiro e os seus médios jumentos, com o do
chocalho à frente, carregados de farinha para o consumo da casa. Logo é o
astuto arrieiro, de vara na cinta e fio e agulha enrolado na aba do chapéu a
oferecer a venda do carreguio trazido em machos e burros, ou o inverso, com a
récua descarregada, a propor compra de cereais para ir vender.
O arrieiro – diga-se de passagem – é um bacharel de argúcias e subtilezas,
timbrando em iludir os incautos. Não pretende ganhar muito, assevera ele.
Bastam-lhe as crescenças. Explicando: se comprar irá logo baptizar o grão,
encharcando-o nos ribeiros. De trinta alqueires obterá quarenta...
Uma fraude como tantas que por aí se praticam à sombra de impunidade
relaxista, senão tolerada por usos velhos.
Possuído de velhacaria semelhante, também o moleiro procura trapacear a
medição da farinha que entrega, peneirando-a com as mãos ao encher a rasoira (Silva Picão, Através dos Campos).
Amassaria e Cozesura de Pão – Que Deus te acrescente e as almas do céu para
sempre.
Silva Picão, no seu labor de contar todas as tradições rurais com o rigor
que se lhe reconhece, descreve assim, no que se refere ao pão, a vida nos
montes:
Amassaria - É a oficina do fabrico de pão das diferentes qualidades que se
consomem. Tomando por base a importância do consumo, temos em primeiro lugar o
pão de centeio, denominado marrocate, que se dá aos criados e “malteses”; em
segundo, o pão de trigo – branco a ralo – que é respectivamente para amos e
criados de portas adentro; em terceiro e último, as perrumas, pão de farelos de
centeio com que alimentam os cães de gado. O marrocate fabrica-se em escala
muitíssimo superior à dos outros pães. As casas grandes consomem anualmente
setenta a cem moios de farinha.
A amassaria está provida de todos os seus pertences: as altezas de madeira
e alguidares de barro para os amassilhos; caixotes, sacas ou tulhas para as
farinhas e farelos; caniços para os marrocates e perrumas, peneiras, toalhas,
tabuleiros, etc. Se o movimento é grande, a farinha e o pão ocupam uma segunda
casa contígua ou separada.
Há montes em que a cozinha a amassaria para a criadagem ficam fora da casa
de habitação (Outro autor
refere-se também à amassaria: N’alguns montes, o meu era um d’eles, também a
casa de fóra era casa de amassaria. Ali se peneirava, ali se amassava e
tendia... (Brito Camacho, Por Cerros e Vales).
Forno de cozer pão - Edificação tosca e grosseira, nada notável quanto à
sua aplicação principal. Mas como sob a designação genérica de forno se usa
compreender a alpedrada que o precede, impôe-se a referência, atendendo a que
este local é o agasalho ou albergue habitual de mendigos e vagabundos que, no
geral do Alentejo, são conhecidos por malteses.
A Vida nos Montes - Os primeiros a levantarem-se são os criados de portas
adentro, isto é, o cozinheiro e o amassador de há muito acordados pelo cantar
dos galos.
Às duas e meia ou três da manhã no Outono e começo do Inverno e às quatro
no restante do ano vêem-se já erguidos
aqueles homens. O amassador para despachar os amassilhos – dois e três por dia,
conforme as precisões. O cozinheiro para cuidar do lume, das asadas com água a
aquecer, do ordenho das
cabras, etc.
(...) O cozinheiro prossegue nos já iniciados, o amassador pôe o forno a
arder, e o abegão, enquanto a água abre a fervura, pôe a mesa colocando-lhe a
toalha, os marrocates e as azeitonas.
Mas é Azinhal Abelho que, de forma sequencial e encontrando as palavras
certas, nos dá todos os procedimentos da feitura do pão e alguns envolvimentos
tradicionais:
O pão do Alentejo faz-se ùnicamente de farinha de trigo, que é moída em
azenhas. Qualquer curso de água, até aos calores da estiagem, possui a força
bastante para fazer moer duas pedras de azenha.
Veio o moleiro, que em sacos de sarja branca traz a farinha, feita de
trigo, já prèviamente joeirado, transportada nos carros alentejanos, que vão
pela estrada fora no seu cantar dolorido, em que o barulho das rodas se casa
harmoniosamente com o tilintar das esquilas, na melancólica solidão daquela
estrada longa que nunca mais tem fim. Alta madrugada e principia a faina de
fazer pão; peneira-se, fermenta-se antes do amassilho; depois de finto,
tende-se e vai para o forno. Só então é que fica capaz de trincar.
Nesta região há três espécies de pão: pão alvo, pão ralo e perruma, que é o
pão feito de sêmeas e destinado ao alimento dos cães (perros).O pão alvo, que é
o menos alimentício, aliás, constitui o pão dos dias festivos dos casamentos,
dos batizados ou ainda das fogaças ou dos presentes.
O pão ralo, mais substancial, é o pão feito com farinha da qual foi
ùnicamente tirada só uma camada de rolão (farelo), isto é, peneirada uma só
vez, sendo essa operação no pão alvo feita por duas tarefas; a primeira
peneiração efectua-se por uma peneira de arame fino e a segunda em peneira de
seda. As sêmeas com que são feitas as perrumas servem ainda para cevar porcos,
cozinhar beberagens para as cavalgaduras de estimação, pois dá-lhes uma pelagem
fina.
Este
pão ralo come-se ordiàriamente. O formato, quer do alvo, quer do ralo, varia
conforme o fim a que é destinado. Existem vários feitios, baseando-se a
diferenciação na maneira de tender. Assim, temos pães de tendeduras que podem
ser de cancuruta – cocuruta – quem dá e furta nasce-lhe uma cacuruta – diz o
provérbio) e de cabeleira à francesa. Os outros tipos de pão, como sejam
fanecos, tomam o nome de merendeiras ou merendas e marrocates. Entenda-se por
tendedura um feitio que o torcido da massa leva e que é modelado com a polpa da
mão, depois de o dito trocido ser dobrado com as pontas para dentro.
A tendedura no pão de cancuruta fica numa das pontas e a parte mais pequena
vai para cima; no tipo de cabeleira, essa parte vai ao contrário e no formato à
francesa a tendedura é feita ao centro.
O faneco não leva tendedura; sova-se a massa numa espécie de bola, depois
de pesada, sendo o preceito de ficar dura (massa testa vai à festa). O tipo de
faneco tem um peso especial que varia de lavradorias para lavradorias. É com
este pão que se servem as comedias ou comedorias, para os ganadeiros. Esta
comedoria é a ração de comida, que pode ir de 8 a 15, porque nas comedias de um
mês dá-se a ganhar trigo e não pães amassados. Existem casas de lavoura, já
antigas, aonde o peso desse pão, a dar a ganhar aos que a servem, vem sendo
estipulado de geração em geração! No entanto, o peso regula num quilo,
aproximadamente.
Os ganhões não vencem pão contado, pois comem à mesa redonda .Uma noite
qualquer que pretendam ir dormir a casa (pois o seu poiso é no assento da
lavoura) e não ceiam, com aviso prévio, ganham um pão e um queijo que levam para
casa. Portanto, quando forram uma ceia ou um jantar de domingo, têm direito a
um pão que se chama merenda ou merendeira.
Cada ganadeiro, seja ajuda ou maioral, tem de ração um marrocate por dia.
Pode comê-lo todo ou não, que ninguém tem nada com isso. Os sobejos, em geral,
quando os homens são velhos, servem para sustentar a filharada (Esta mesma referência é feita por outro autor: Os
que não tinham encargos de família, se forravam um pão, lá de longe em longe,
era para comprarem uma onça de tabaco, que custava trinta réis, e uma folha de
mortalhas, os que não fumavam cachimbo.
(...) Os bons chefes de família, quando eram só eles a ganhar, forravam uns
quatros panitos por semana, o pão da merenda, tal havendo que forrava seis,
obscuros heroes que almoçavam ao romper da manhã, para cearem já noite, durante
este longo intervalo fazendo um jejum perfeito, sem tomar aqui a palavra no seu
rigoroso significado eclesiastico (Brito Camacho, Gente Vária).
Na visita que as comadres fazem umas às outras, levam de presente, em
regra, um pão carinhosamente
tendido, isto é, o melhor que se encontrava no tabuleiro. Esse pão toma também
o nome de merendeira, apesar de o seu formato ser de tendedura. A troca de
merendeiras entre comadres ou vizinhas faz-se muitas vezes até sem visitas.
Como em cada monte (casal) se fazem fornadas sòmente de oito em oito dias e
umas desencontradas das outras, aceita-se de boamente a troca de pão fresco ou
a visita de merendeiras moles. Entre comadres mais abastadas, trocam-se não
sòmente um pão de tendedura, mas também umas merendeiras do mesmo formato do
outro pão, com o fim de presentear a criançada. Estas merendeiras têm muitas
vezes carne de porco a servir de recheio.
Com pão mole ainda quente e misturado com azeite, mel e canela, faz-se a
chamada tiborna de pão quente. Com pão duro fazem-se as fatias paridas, que se
dão de alimento às parturientes (daqui vem o nome) e a quem as visita, nos
primeiros dias. As fatias paridas são feitas de pão que se embebe em ovo batido
e se frita. Depois de passadas assim são regadas com um molho de mel e miolo de
noz.
Nossa Senhora, no dia da sua festa de Verão, tem também a sua fogaça de
merendeiras, como comadre bastante querida. Sòmente uma diferença: o pão que
leva no centro das merendeirazinhas do Menino Jesus é chamado de alqueire. Terá
de caber à justa na porta do forno. Após ser cozido é enfeitado com imensas
flores de papel e versos em louvor da Virgem. Na festa de Santo António,
retribui-se a dádiva dos devotos com pães pequeninos (tão pequenos que cabem na
palma da mão). Estes pães tomam nome de pães de Santo António.
Por altura de Novembro, cantam os rapazes de porta e em porta, a celebrar o
mês das almas. O último verso das loas é sempre este: “Esmola para as benditas
almas”.
O menos que recebem de dádiva é um pão. Quando se celebram as almas em
festa paroquial, lá estão os tabuleiros de pão, que o povo chama “pão das
almas”.
Após
o ofício dos mortos, é esse pão leiloado e o seu dinheiro é aplicado em missas
rezadas pelos defuntos.
Por este facto se demonstra bem o quanto de espiritualidade existe na
maneira de ser da nossa raça. O pão das almas em junção com o pão da boca. A
atestar ainda esta afirmação, encontramo-la nas palavras que pronunciam as
mulheres ao fazerem a cruz na massa que acabou de ser manipulada ou na boca do
forno depois de uma fornada de pão começar a cozer:
“Que Deus te acrescente
E as almas do Céu para sempre”.
Vai crescendo o pão
ao calor do braseiro do forno. Crescem as almas no acolhimento divino (Ao levantar das eiras..., Azinhal Abelho).
Gonçalo Cabral, um alentejano que preza como poucos as nossas tradições,
deu-nos uma receita de Como se fazia o pão em casa:
Ia-se
à moagem comprar a farinha. Peneirava-se e ficava um pó fininho. No outro dia
de manhã, levantava-se o paninho que tapava a farinha, fazia-se uma covinha e
punha-se lá meio o fermento da véspera muito bem desfeito em água, farinha e
uma mão cheia de sal. Envolvia-se tudo e amassava-se. Levava água aos poucos.
Amassava-se outra vez até a gente ver que estava fabricado... Era quando fazia
"empolas". Com farinha fazia-se então uma cruz.
Antes de amassar, quase toda a gente se benzia. E as palavras eram:
“Deus te acrescente e as almas do céu para sempre”.
Na borda do alguidar punha-se um bocadinho de massa para se ver como ia
crescendo. Tapava-se com um panal e à volta punham-se panos para não arrefecer.
Mais ou menos três horas depois a massa do alguidar chegava ao bocadinho que se
tinha posto na bordinha. Era sinal que estava capaz de tender. Tirava-se uma bola,
tendia-se o pão: uma cabeça dum lado, outra do outro.
Ia então para o forno, que já tinha sido preparado.
Primeiro enchia-se de lenha, que ardia. Com uma vara com um forcado (metade
de pau e metade de ferro) esborralhava-se e metia-se lenha outra vez para
aquecer bem. Deixava-se arder e tornava-se a esborralhar.
Assentava. Puxavam-se as brasas todas para um canto. Tinha-se outra vara
com trapos pegados à ponta (eram as “barbas”) para varrer e ficar tudo bem
limpo. Tirava-se então com uma pá.
Dava muito trabalho, mas o pão era uma maravilha. Tão bom comê-lo com
queijo ou azeitonas, ou para as sopinhas... Nem ao fim de quinze dias criava
bolor .
E Fialho de Almeida, dá-nos, no País das Uvas, um apontamento de
aldeia, bastante pitoresco, relacionado com a cozedura do pão em forno de
padeira:
Os sinos da paróquia dão matinas e o rapaz do forno manda tender o pão às
donas de casa – que o forno aguarda já quente, e fora mister que a fornada
entrasse a horas de não demorar o almoço à nossa amiga padeira (Fialho de Almeida, O País das Uvas).
Gastronomia do Pão - (...)
pão que para os criados era de toda a
farinha, e para os amos era de farinha espoada.
O pão, tal como o dissemos no princípio, “De tal maneira (...) esteve e
está presente no nosso quotidiano, que ele atravessou a vida dos alentejanos em
todos os sentidos, podendo dizer-se que, da terra à boca, o pão foi uma criação
omnipresente que, directa ou indirectamente, sustentava todas as actividades da
nossa região.”
Assim,
“Produtor de pão, o alentejano foi e é um comedor de pão, dele se sustentando
há séculos, de geração em geração, dele fazendo, até há bem pouco tempo, a base
da sua alimentação, com ele criando a gastronomia do pão, fazendo-o entrar na
maioria dos pratos que inventou, dando-lhes sempre um toque de diferença quer
na confecção, quer na ilusão, porque, tendo muitos deles o pão como base, era
preciso seduzir, sábia e saborosamente, os paladares através de formas várias
de o cozinhar ou de o comer. Hoje, sendo ainda muito importante na nossa
alimentação, o pão já não tem, talvez, a importância que teve outrora, mas
continua a ter uma presença muito forte (...)”.
O pão comia-se com tudo e, sem pão, nem os condutos tinham gosto. Saído do
forno, mole, comia-se em tibornas: Com pão mole ainda quente e misturado com
azeite, mel e canela, faz-se a chamada tiborna de pão quente. Com pão duro
(...) fazem-se as fatias paridas, que se dão de alimento às parturientes
(daqui vem o nome) e a quem as visita, nos primeiros dias. As fatias paridas são
feitas de pão que se embebe em ovo batido e se frita. Depois de passadas assim
são regadas com um molho de mel e miolo de noz, tal como nos referiu acima
Azinhal Abelho. Também se faziam tibornas de pão mole com azeite e açúcar e de
pão mole com manteiga.
Mas, o pão era dado a comer às crianças em fatias barradas com banha e
açúcar ou com o pingo da carne de porco frita (também em banha), a chamada
manteiga de porco, vermelha, que assim ficava devido à massa de pimentão com
que era barrada a carne do alguidar que, depois de frita, acompanhava e
acompanha as famosas migas alentejanas. O pão comia-se também com toucinho: Toda
a boa gente forcejava nos campos sendo o calórico toucinho a base energética
dos motores em todas as idades. Pão e toucinho cru, cozido, assado, frito
(Bento Caldeira, Memórias de um Médico). Também Fernando Namora fala do pedaço
de toucinho com pão, azeitonas e aguardente (F.Namora, O Trigo e o Joio).
Em especial, as torradas de pão barradas com toucinho cozido, habitualmente,
resto do cozido alentejano, eram muito apreciadas.
Mas também se comia com queijo: A merenda consta de pão com queijo (...)
cada qual tira o queijo que lhe compete e igualmente se apossa dos marrocates
que calcula comer (Silva Picão, Através dos Campos), ou com linguiça
e chouriça.
A bucha de pão com fruta era um hábito salutar das gentes do sul, em
particular com uvas e figos, no tempo de verão.
Comer pão seco, em situações em que não havia conduto, era uma necessidade:
no intervalo das comidas é corrente qualquer serviçal comer a sua cunha ou
pedaço de pão (Silva Picão ,ob. cit.).
Fialho de Almeida no conto Idílio Triste, incluso no livro O País
das Uvas, também alude a esta situação: E daí, se me desse um
tasgalhinho de pão, por alma dos seus defuntos...
Daqui, talvez, a expressão, pão seco faz piolhos, ou a outra, a
pão e água, que se refere também à falta de conduto (...).
A chamada torricada, fatias de pão torrado com alho barrado e
azeite, era também uma prática corrente. O pão era tão importante que, quando
caía ao chão, as pessoas limpavam-no, benziam-no e depois comiam-no. O pão era
considerado uma dádiva de Deus e, portanto, sagrado.
O pão acompanhava todos os pratos que não o incluíam já como componente.
Mas aqueles em que ele era e é indispensável têm por designação sopas,
açordas e migas. As designações sopas e açordas algumas vezes
confundem-se, embora os termos tenham significados diferentes em várias zonas
da região do Alentejo. São os casos da sopa de tomate ou açorda de tomate, da
sopa de cação ou açorda de cação, expressões que se referem ao mesmo prato. Mas
o que sopas e açordas não dispensam é o pão duro migado no caldo, e na maior
parte delas o pão lá está para engrossar e encher: na sopa de rechina, no
ensopado de borrego, no cozido alentejano, na sopa da panela, na açorda de
alho, na açorda de hortelã, na açorda de marisco (um prato hoje muito consumido
em todo o Alentejo, mas com origem no litoral e mais consumido, outrora, entre
as gentes ribeirinhas), na sopa ou açorda de tomate e de cação, na sopa de
beldroegas, no gaspacho, na sopa de espinafres, no calducho. Também em todas as
sopas de feijão e grão se migava pão para avultar. Comiam-se ainda sopas de
almêce, sopas de leite e sopas de café, nas quais o pão entrava em abundância
Nas
migas o pão é fundamental. Não há migas sem pão. Daí que, para aproveitar o
pão, já muito duro, se tivesse inventado este prato, altamente calórico, que
tem várias versões: migas com carne de porco, migas de espargos, com couve de
flor ou com poejos (também com carne de porco), migas gatas (com bacalhau,
azeite, alho e coentros), migas canhas (com leite), migas (ou miolos) de tomate
(com banha, alho, louro e oregãos) e a mioleira, uma forma de migas (onde a
banha, o alho, o vinagre e o louro brilham para dar
sabor ao prato) com miolos de porco, ovos batidos e miolos de pão. Sendo a base
das migas o pão, é, contudo, a banha (onde é frita a carne do alguidar, em
cubos de carne limpa e presas de entrecosto, um dia antes barrada com massa de
pimentão), que dá o gosto ao prato, juntamente com as ervas aromáticas, quando
elas são usadas. As migas de tão benquistas foram celebradas em cantigas
populares: Pão
cortado/com fartura/ensopado/na gordura/Com cuidado/com jeitinho/ensopado/na
gordura/do toicinho...Lindas migas/tão amigas/tão amadas/lindas migas/quando
vêm/bem sequinhas/tostadinhas/calham bem (Vasconcelos e Sá e Cª, Palhas e
Moinhas, Revista do Alentejo em dois Actos).
Mas é sobretudo no gaspacho, na
açorda e nas migas que o pão mais se nota.
O gaspacho é a chamada sopa fria (...caspacho acompanhado de azeitonas...,
como nos revela Silva Picão), com alho pisado, água fresca, vinagre, oregãos e
azeite, com tomate e pepino e sopas de pão migadas no caldo, acompanhado de
azeitonas de conserva, de peixe frito, habitualmente carapaus pequenos
(jaquinzinhos) ou postas finas de peixe espada, ou postinhas de cação do rabo,
ou petingas (sardinhas pequenas).
Mas nos montes
de antigamente o gaspacho tinha o seu quê de diferente: Na cozinha dos ganhões ultimam-se os preparativos
para dar de comer aos homens. Pouco depois, um grupo com o cozinheiro à frente,
trazia com muita cautela, seguros com as duas mãos, oito alguidares quási
cheios de água fria, temperada com azeite, alhos pisados, vinagre e sal, que
colocam sobre uma grande banca de ganhões, num recanto do monte. Dum saco tiram
pães em marrucates de duzentas gramas, feito há quatro dias, que migam em
fatias muito delgadas, vão lançando no caldo. Preparado assim o caspacho ou
gaspacho, pega cada um em sua colher – que alguns trazem na fita ou no cordão
do chapéu – e à voz de vamos lá com Deus, pronunciada pelo manageiro, começava
a caspachada. A refeição decorre quasi sempre em silêncio. O cozinheiro retira
os alguidares, e, como quem não quer a coisa, vai estar com o amo para receber
ordens. Comem como uns brutos! Almas do diabo. .. Por aquele andar bem pode vir
mantimento! Só de pão abalaram vinte quilos... vinagre uns dois litros... e
azeite andou pelo meio quartilho...(Capela e Silva, Ganharias).
A açorda, outra delícia da nossa gastronomia (Confortados com uma boa
açorda alentejana. (...) uma boa açorda de bacalhau - Brito Camacho, Por
Cerros e Vales), é muito bem descrita por Silva Picão: O almoço consta
ordinariamente de açorda com azeitonas. Da clássica açorda alentejana, cujo
caldo o abegão prepara num instante, lançando a água a ferver sobre os
barranhões, onde o cozinheiro depôs os temperos – azeite e sal picado com alho,
poejos ou coentros e pimentão. Escaldado o azeite, prova-se, corrige-se a água
do sal, e, pronto, está o caldo feito, exalando o cheiro activíssimo dos
temperos. Com o caldo a evaporar, o abegão ou o sota conduzem-no nos alguidares
para a mesa, de antemão posta por eles. Só faltam as sopas que, em breve, serão
migadas pelos ganhões.(...) Em seguida, cada qual puxa da navalha e todos
passam a migar o pão para os alguidares, até mais lhe não caber (Silva. Picão,
ob. Cit). Às sopas que se faziam com as côdeas da base do pão chamavam-se solas;
às sopas de pão duro amolecidas no caldo chamavam-se sarôidas. A açorda era acompanhada, a maior parte das
vezes, por azeitonas de conserva, e a menor parte das vezes por ovos, sardinhas
assadas, bacalhau cozido, pescada cozida, e peixe frito (sardinhas, carapaus,
peixe espada).
A massa do pão entra na confecção de alguns bolos e doces, como sejam o
bolo de massa finta, as merendeiras e folares da Páscoa, e em quadradinhos
fritos, no doce chamado sopa dourada. O pão, em cubos, torrados ou
fritos, serve ainda para acompanhar purés.
Este é o rosário do pão do Alentejo através das obras dos seus escritores,
um pão que identifica um povo, podendo até ao povo alentejano chamar-se o
povo do pão. Da luta milenar para o ganhar todos os dias (sustentando, em
boa parte, o país e, em particular, Lisboa, e gerações e gerações de homens e
mulheres que mourejaram nos campos ao rigor) até às cíclicas fomes de pão
sentidas por aqueles que mais lutaram para o obter, o pão alentejano é um
símbolo da abundância e da miséria, mas, sobretudo, é um símbolo daquilo que já
designei por riqueza da cultura de pobreza, porque foi com o pão que o
alentejano, simultaneamente, sobreviveu e criou uma manêra de ser, isto
é, uma identidade ímpar que o distingue, mas que o torna também universal, pois
é conhecida a sua cosmopoliticidade, oferecendo-se aos outros naquilo que tem
de melhor: a sua serena criatividade.
Editado por:
No evento cultural
“O CICLO DO PÃO”
(Reviver
as fainas agrícolas e outras
ligadas à
alimentação no Alentejo)
A Ceifa, o Transporte do Trigo em
Carroça, a Debulha, a Moagem, a Cozedura e O Pão
Moinho do Alcaide
Herdade das Mestras de Baixo
ÉVORA
29 / Junho / 2003
Patrocínio
CÃMARA MUNICIPAL DE ÉVORA