sexta-feira, 14 de março de 2014


TODA A VIDA FUI PASTOR,
TODA A VIDA GUARDEI GADO


(Ensaio etnográfico sobre o borrego)


J. M . Monarca Pinheiro
(Confraria da Moenga)


J. M. Monarca Pinheiro



TODA  A VIDA FUI PASTOR,

TODA  A VIDA GUARDEI GADO






Não há gado como a ovelha, para o lavrador. Ella dá-lhe o leite, dá-lhe a carne, dá-lhe a lã, dá-lhe a pelle, e até urina e esterca – com sua licença – para o dono.

Brito Camacho, Gente Rústica

Sete anos de pastor Jacob servia...

A pastorícia é uma antiquíssima actividade humana. As culturas hebraica, grega, romana, cristã e árabe integraram nos seus escritos sagrados e profanos muitas referências ao pastoreio de gado, particularmente de ovelhas, bem como aludem a tarefas directa ou indirectamente a ele ligadas, como o aproveitamento do leite, da carne, da lã e da pele.
Os Hebreus foram um povo nómada, povo de pastores que praticava a transumância com rebanhos de milhares de cabeças. Diversos episódios biblícos nos dão notícia da pastorícia, bem como do uso de ovelhas e cordeiros para fins sacrificiais, numa terra, Canaã, que é considerada, terra de que mana o leite e o mel.
Recordemos alguns desses episódios.
No Génesis diz-se: Abraão era muito rico em rebanhos (...). Lot que acompanhava Abraão, possuía, igualmente, ovelhas (...). Houve questões entre os pastores dos rebanhos de Abraão e os pastores dos rebanhos de Lot (Génesis, 13).
Também no Génesis se relata, no sacrifício de Isaac: Erguendo Abraão os olhos, viu, então, atrás dele um carneiro preso pelos chifres a um silvado. Foi buscá-lo e ofereceu-o em holocausto, em substituição do filho (Génesis, 22).
Ainda no Génesis, o episódio do encontro de Jacob com Raquel, retrata um mundo de pastores: Jacob perguntou aos pastores: De onde sois meus irmãos? Responderam: Somos de Harran. Ele disse-lhes: Conheceis Labão, filho de Nahor?. Responderam: Conhecemos. Disse-lhes ele: E está de boa saúde? Responderam: Está de boa saúde, e ali vem Raquel, sua filha, com o rebanho. Ele disse: Ainda é dia claro, é cedo para recolher os rebanhos; dai de beber às ovelhas e voltai com elas a pastar. Responderam: Não podemos, enquanto todos os rebanhos não estiverem reunidos. Então, afasta-se a pedra da boca do poço, e damos de beber ao gado (Génesis, 29). 
No livro do Êxodo diz-se: Moisés, porém, conseguiu fugir do Faraó, refugiando-se na terra de Madian. E quando lá chegou, sentou-se junto a um poço. As sete filhas do sacerdote de Madian foram tirar água e encheram os tanques para dar de beber ao gado do pai. Mas tendo chegado alguns pastores, obrigaram-nas a sair dali. Então, Moisés ergueu-se, tomou a defesa delas e deu de beber ao gado que lhes pertencia. (...) Moisés apascentava o gado de Jetro, seu sogro, sacerdote de Madian. Um dia, conduzindo o rebanho para além do deserto, chegou ao monte de Deus: o Horeb. O Anjo do Senhor apareceu-lhe numa labareda, no meio duma sarça (Êxodo, 3) .
A instituição da Páscoa é outro episódio bíblico referencial: No décimo dia deste mês, tome cada um de vós um cordeiro por família, um cordeiro por cada casa. Se a família for pouco numerosa para comer um cordeiro, comê-lo-ão em comum com o seu vizinho mais próximo (...). Será um cordeiro sem defeitos, macho e com um ano de idade; podereis escolher um cordeiro ou um cabrito (Êxodo, 12).
No Primeiro Livro de Samuel, várias passagens se referem a David como pastor. O profeta Samuel procura David para o ungir em nome do Senhor: Estão aqui todos os teus filhos? Isaí respondeu: Resta ainda o mais novo que está apascentando as ovelhas. (...) Saul mandou mensageiros a Isaí, dizendo: Manda-me o teu filho David, o pastor. Perante a necessidade de enfrentar o filisteu Golias, Saúl, Rei de Israel, não confiando em David, diz-lhe: Combatê-lo, tu? Não é possível.(...) David respondeu: Quando o teu servo apascentava as ovelhas do seu pai e vinha um leão ou um urso roubar uma ovelha do rebanho perseguia-o e matava-o, tirando-lhe a ovelha da boca (Primeiro Livro de Samuel, 16, 17).
No Cântico dos Cânticos, na bela poesia “O Esposo”, este, referindo-se à esposa, diz: (...) Os teus cabelos são como um rebanho de cabras descendo pelas vertentes das montanhas de Galaad. Os teus dentes são como um rebanho de ovelhas tosquiadas, que sobem do lavadouro; cada um leva dois cordeirinhos gémeos, e nenhuma há estéril entre elas (Cântico IV, 4).
Entre os gregos do Séc.IX a.C. (...) A função económica dos pastores de Homero consistia antes de tudo em abastecer de carne fresca as gentes da cidade e da planície. Não era porém a única, e não devemos esquecer o fabrico de queijos, sobretudo dos queijos de leite de cabra e ovelha. Tanto mais que a Odisseia nos legou uma descrição bastante detalhada de uma dessas queijarias, a de Polifemo. Está instalada na gruta do Ciclope. Quando Ulisses e os seus companheiros penetram na caverna, fazem de relance o inventário do material: tabuleiros carregados de queijos que acabam de fermentar e endurecer, vasos cheios de leite desnatado, cestos para pôr a correr o leite coalhado, jarras, baldes de madeira para mungir os animais.
Os métodos da indústria queijeira homérica são bastante conhecidos. Os rebanhos partem de manhãzinha para as pastagens depois das crias terem mamado. Estas ficam no estábulo para não mamarem nas mães durante o dia. Ao anoitecer os rebanhos voltam. As mães com as tetas inchadas chamam ruidosamente pelos filhos; estes, do estábulo, respondem: é uma bela barulheira (Odisseia, IV, 433, 435). As mães são então mungidas antes de entrarem no estábulo, mas, bem entendido, não completamente. Põe-se de parte uma pequena provisão de leite para beber às comidas. O resto é para fabricar queijo. Põe-se imediatamente o leite a coalhar; a operação efectua-se rapidamente. Põe-se o leite coalhado em pequenos cestos de junco para o fazer escorrer. Depois são batidos e espremidos. Por fim os queijos são dispostos sobre tabuleiros num sítio coberto, onde acabam de fermentar e secar (Émille Mireaux, A Vida Quotidiana no Tempo de Homero).
Entre os romanos Os proprietários entregavam-se também à criação de gado, e era sem dúvida a dos ovinos que predominava. No momento do tremor de terra de 62 (Pompeia) morreram seiscentas ovelhas. Columela aconselhava a criar gado para se obter estrume, conselho que os proprietários de vinhas decerto seguiriam, dadas as necessidades de adubação nessa cultura. Em certas villae os rebanhos eram agrupados num curral e guardados por cães (Robert Étienne, A Vida Quotidiana em Pompeia).
O Evangelho de São Lucas refere a parábola da ovelha perdida: Qual é o homem dentre vós, que, possuindo cem ovelhas e tendo perdido uma delas, não deixa as noventa e nove no deserto e vai à procura da que se havia perdido, até a encontrar? Ao encontrá-la pôe-na alegremente aos ombros e, ao chegar a casa, convoca os amigos e vizinhos e diz-lhes: Alegrai-vos comigo, porque achei a minha ovelha perdida (...) – (São Lucas, 15).
No Evangelho de São João é significativa a parábola d’O bom pastor: Em verdade, em verdade vos digo que aquele que não entra pela porta no curral das ovelhas, mas sobe por outra parte, é ladrão e salteador. Aquele que entra pela porta, é o pastor das ovelhas. A este o porteiro abre e as ovelhas ouvem a sua voz; e chama pelo nome as suas ovelhas, e leva-as para fora. E depois de fazer sair todas as ovelhas, vai diante delas e as ovelhas seguem-no, porque conhecem a sua voz. Mas não seguirão um estranho, antes fugirão dele, porque não conhecem a voz dos estranhos. (...) Eu sou o Bom Pastor: O bom pastor dá a vida pelas suas ovelhas. Mas o mercenário, que não é pastor, de quem não são as ovelhas, vê vir o lobo, deixa as ovelhas e foge, enquanto o lobo as arrebata e dispersa, porque é mercenário e não se importa das ovelhas. Eu sou o Bom Pastor e as Minhas Ovelhas conhecem-me (Evangelho de São João, 10). 
É preciso não esquecer que Jesus foi adorado, na gruta de Belém, por pastores que lhe ofereceram os frutos dos seus rebanhos.
Curiosa é a tese que Francisco Dias da Costa apresenta, das ovelhas, enquanto espécie, serem originárias da Região dos Barros, raia portuguesa entre Serpa e Campo Maior e Extremadura espanhola (Solana de los Barros, Salvatierra de los Barros, Villafranca de los Barros, Calzadilla de los Barros) e de o nome Guadiana, significar “rio das ovelhas”: Rica de pastos, nela, segundo alguns autores, teriam aparecido sobre a terra as primeiras ovelhas. Animais de grande interesse económico, dadas as suas modestas necessidades alimentares e alto rendimento (em leite, em lã e em carne), a sua docilidade é proverbial. Daqui irradiaram, já melhoradas, espalhando-se por todo o mundo (...).E da origem das ovelhas nestas terras teria o rio recebido o nome de Guadiana. Teria sido chamado pelos Fenícios, Anas (rio Anas), significando esta palavra, em fenício, ovelha ou ovelhas. Seria, pois, o rio das Ovelhas. O nome teria sido adoptado pelos Romanos e pelos Berberes. Estes, no entanto, antepuseram ao nome Anas, a palavra que no seu vocabulário significa rio, Ued ou Uadi (ou Guadi), fixando-se assim o nome Guadiana (Francisco Dias da Costa, Maravilhoso Guadiana).
Para António Borges Coelho (...) o borrego ainda hoje assinala os limites geográficos da passagem mais duradoura da civilização árabe entre nós (António Borges Coelho, Portugal na Espanha Árabe).
No Século XVI português, dos vários autores que escreveram sobre o tema dos pastores e das ovelhas, dois são aqueles que criaram belos textos poéticos: Dizem que havia um pastor/Entre Tejo e Odiana,/Que era perdido de amor/Por uma moça Joana./Joana patas guardava/Pela Ribeira do Tejo;/Seu pai acerca morava,/E o pastor de Alentejo/Era e Jano se chamava.//Quando as fomes grandes foram,/Que Alentejo foi perdido,/Da aldeia que chamam o Torrão,/Foi este pastor fugido./Levava um pouco de gado/Que lhe ficou de outro muito/Que lhe morreu de cansado: Que Alentejo era enxuto/De água e mui seco de prado (Bernardim Ribeiro, Éclogas). 
Verdes são os campos/de cor de limão/assim são os olhos/do meu coração.//Campo que te estendes/com verdura bela/ovelhas que nela/vosso pasto tendes;/D’ervas vos mantendes/que traz o verão,/e eu das lembranças/do meu coração.//Gado que pasceis,/com contentamento,/vosso mantimento/não no entendeis:/isso que comeis/não são ervas, não:/são graças dos olhos/do meu coração (Luís de Camões, Obras de Luís de Camões).
Rodrigues Lobo, nas Éclogas, também escreveu sobre o tema: Esta é a antiguidade, e nobreza da arte dos pastores, a que tirou o preço a cobiça dos homens; a esta, como mais douta, pertence o conhecimento do pastos, a natureza das terras, a virtude das ervas, as mudanças do tempo, o movimento dos céus, os efeitos do sol, a qualidade dos animais. Esta vida, como mais quieta, tem em seu trabalho todas as cousas com que pode sustentar-se: a lã, as peles, a carne dos animais, as ervas, legumes, o fruto das plantas. Tratam com a terra e com as ovelhas que nunca recusam o senhorio dos homens, antes com uma humilde sujeição entregam seus frutos agradecidas a todo o trabalho. E qual mais agradecido que o de um pastor? E que maior engano, que o de quem desconhece esta verdade? Que estilo mais conforme ao uso da razão, e menos inficionado da malícia que a singela prática dos pastores? (Rodrigues Lobo, Éclogas).


E o Pastor de Alentejo Era...

Na literatura de inspiração etnográfica encontram-se textos admiráveis que retratam com rigor o mundo dos pastores e rebanhos de ovelhas. Vejamos o texto Ganadeiros, de J. A. Capela e Silva: D’essa prestimosa classe de ganhões, destacam-se pelos seus hábitos singulares, os pastores. Ao acomodarem-se, raro é o que não trata a condição de poder trazer ao rebanho, determinado número de cabeças, ou seja o seu puvilhal. Esta regalia fixa-o definitivamente ao rebanho.
Pastor com puvilhal é homem que desaparece das aldeias, para viver na malhada junto ao bardo do rebanho. Só de longe em longe abandona a obrigação. Depois da família, é o puvilhal que lhe absorve todas as atenções.(...) Períodos há em que os pastos escasseiam, e então os ganadeiros agitam-se à porfia, junto do lavrador, cada um a fazer valer aquilo que julgam de seu direito, exigindo pastagens para os seus rebanhos.
Os pastores em plano secundário empregam todas as habilidades para não ficarem atrás, mas por via de regra são vencidos pelos privilégios dos outros ganadeiros, quando os há. Surgem então períodos de mal estar entre eles, a ponto de alguns deixarem as lavouras para não perderem o seu remédio (...).
O rebanho ou a manada é tudo para o ganadeiro. Aqueles sons das mangas a martelar notas de música grave, a harmonia dos chocalhos machos e da samserras das manadas; o trinar agudo, estouvado das esquilas e sinetas das cabradas, a toada alegre dos rebanhos, é para o ganadeiro a melhor manifestação de grandeza do mundo em que vive. Todos os ganadeiros têm a paixão dos chocalhos. A loiça para eles é a coroação da sua arte, exprimindo a toda a hora a subjectividade do ganadeiro. É ele que estabelece a harmonia das chocalhadas, espécie de partitura que dignifica o autor.
(...) O ganadeiro passa a vida a curtir e a surrar peles de gado morrediço para fazer coleiras, que cose com tiras estreitas de pele de cão ou de gato – para um correol não há aí como pele de gato – e é raro encontrá-los sem que tragam enfiada no braço esquerdo, uma coleira enchocalhada, ou a fazer cáguedas, ou um badalo de pau de ferro, ou de cepa de piorno.
(...) As chocalhadas  e a paisagem de fundo a perder de vista, máscula, viril, sem verde piegas, completa o quadro. E o ganadeiro naquele mundo, com o seu puvilhal e a sua choça, independência sonhada, desde os tempos de ajuda, sente-se o mais feliz dos homens.
Quando as ovelhas estão afilhadas, depois de uma outonada que deu fartura, que cobriu de manto verde as restolhices e pousios, aí pela altura dos Santos, quando o sol desperta no nascente, em manhã serena, no fundo arroxeado que tarda, o horizonte, e o pastor de gravato em punho, de samarra e safões no alto do bardo, levanta a cancela tecida de giesta, e se abre em canal escuro, largo, vertiginoso, a correr como água de lago que tivessem destapado, e se espraia ao longe num berreiro onde há todas as notas de música; o toar da loiça em aleluia, os borregos negros de azeviche, ou brancos de neve, aveludados, de joelhos no chão, rabo a dar a dar, afocinhando sofregamente os uberes retesados das mães, ora quietas, ora a amimá-los em requebros de amor maternal, levanta-se mais ainda a planície imensa e reflectem-se no quadro grandioso os encantos da vida do ganadeiro. 
O sol sobe imponente, dissipa as pérolas de orvalho das moitas e restolhos, e o gado espalha-se, alarga à vontade, alegremente, vai aonde quer que o campo é vasto, e as lindas não se alcançam num dia. E o pastor lá vai arrastado pelo rebanho de rafeiro ao lado, sempre a olhar o dono, esperando ordem de um arrodeio.
Depois da borregada, de barriga cheia, como crianças despreocupadas e ladinas, correm e cabriolam ao longo dos caminhos, em magotes cerrados, até que o balar das mais inquietas, por vezes já longe, lhes gritem que vão, não lhes aconteça algum mal.
E os borreguitos de rabos ao vento, partem velozes, como meninos obedientes direitos às mães que, de cabeça erguida, berram de boca cheia, num misto de carinho e de necessidade corporal, que a outonada foi boa...
No verão quando o sol dardeja fogo, e o gado começa a moscar, ei-lo que parte encarreirado, a caminho do acarro numa nuvem de pó. Então, à sombra do montado, ouve-se o badalar suave da chocalhada, acompanhando o ritmo do corpo arquejante, a decrescer, a decrescer... até se extinguir com a última cabeça que se deitou.
Fica depois o cantar das cegarregas, e o susurrar da aragem tépida acariciando a folhagem do arvoredo, e o respirar violento daqueles centos de animais como o soprar de monstruoso fole.
O pastor sentado, deleita-se a olhar o gado, e a sua imaginação alheada do mundo que o rodeia, divaga em sonhos de esperança, em fantasias pueris, pensa nos pastos, e nas feiras, e na lã, a olhar o puvilhal que salpica o rebanho, a orgulhar-se de o possuir...
(...) E o pastor como quem despertasse de sono profundo, volta a olhar o gado, já todo no chão, de pescoço estendido e arquejante...
Depois estende o alforge, admira as obras que trás entre mãos, concentra-se na sua arte, e como que a cantar essas cantigas alentejanas repassadas de sentimento, para ali fica a ramear o buxo ou a cortiça, poeta inspirado na planície a escrever seus versos.
O ganadeiro é para a planície o que a terra ou os montados ou a gadeza, são para o sol ardente. Dominado pela terra vive para ela. A solidão impressionante que o rodeia, entrecortada com o respirar do acarro é como sombra misteriosa de catedral a inspirar-lhe vagos sentimentos de poder divino. E o ganadeiro que raramente ouve o cantar das ganharias, sente-se na solidão de templo majestoso onde o culto é recatado e sublime.
As pastagens exuberantes que ele vê nascer e florir, o aroma do montado em pendão, a vida bonançosa do rebanho, fizeram-no artista.
Assim despertou também o génio maravilhoso de Sansovino, mas o mundo onde a águia ensaiou os primeiros voos, mais generoso, não o prendeu: levou-o para a glória que o havia de imortalizar. Os ignorados ganadeiros alentejanos, esses, envoltos sempre em torvo materialismo, vivem confundidos com a gadeza manadia, escravizados uma vida inteira ao rebanho, alheados do mundo, vivendo só para o lar, e alguns, os mais desgraçados, um pouco para a sua arte.
Os pastores alentejanos são homens simples, quase crianças, com traços indeléveis do rigor do tempo, e do ambiente, só sabendo falar daquilo que se relacione com a sua profissão. A Arte de pastor é ainda hoje transmitida de pais para filhos, começando em tenra idade por ajudas, e só na maioridade alcançam a categoria de entregues ou pastores.
Os que se distinguem na profissão chegam a acomodar-se nas grandes lavouras como maiorais com puvilhal avultado, mas sem rebanho, com a missão de superintender nos rebanhos de gado lanígero.
Ficou célebre o Joaquim Patorra, de Barbacena, terra afamada de ganadeiros, maioral de ovelhas da casa de Ruy d’Andrade,, de Font’Alva. (...) Nas apartações a tirar uma ponta de gado de escolha, ou de refugo, a apontar borregos, ou derrabar ovelhas para casta; nas tosquias a enrolar velos ou a assinar badanas; nas feiras a atender compradores, fazia embasbacar os que o rodeavam.
Os tarros e tarrêtas que saíam das suas mãos tinham fama: pareciam de uma peça só. Bem lançados e sem arrebiques de compra que, dizia, lhes tiravam o merecimento.
Ufanava-se de ter iniciado na arte de ramear buxo muitos ganadeiros.
“Esta queda nasce já com a criatura... tirante algum que sofre de mal, e que puxou p’ra vida de ganadeiro por não poder andar nos ganhões... esta aquela de uma pessoa andar atrás do gado... sem fazer nada... hoje e amanhã..., hoje e amanhã... não podia ser...A gente logo em novo pende para fazer um barbilho... e em se sentando puxa logo da navalha e pega a cortar... depois vê o camarada a fazer coisas... e aqui tem... tem que ser... como é que um homem havia de passar o tempo? Agora nem todos têm o mesmo sentido... mas eu ensinava a todos o que sentia...”
Eram assim os pastores há umas duas dúzias de anos. Consideravam-se acima de ganhões e mesmo dos mestres de obra grossa. Bons tempos esses em que qualquer ganadeiro enchia as ruas da aldeia quando ia à roupa ou passava para as feiras.
Era vê-los de gravato ao ombro, burra arreada com correama de pele curtida com pedra de ume, atafais largos de fivela de compra, alforges rameados; pele de cão de pernas pendentes; cabeçada de testeira larga com arrebiques, misturados com os amuletos de latão brilhante, a meia lua e o signo-saimão...
Viveram felizes. A paz de então, a paz de há vinte e tantos anos, que se evolava dos montes e da planície, formou-se assim. O convívio com o rabanho durante uma vida inteira! A vida social de um grande rebanho, numa imensa herdade, em muitas herdades! As doces e ternas ovelhinhas, de meigo olhar, disputando na luta pela vida uma solada de boleta ou um cômoro de verdura! Quem sabe se a paz de então nascia nestas fontes de verdade? (J. A. Capela e Silva, Ganharias).   

Os trabalhos do rebanho são também descritos no estudo Aspectos Antropogeográficos do Alentejo, de Mário Nunes Vacas, descrição que é complementar: Gado ovino – O gado ovino, sobretudo, passa a maior parte dos dias de calor no calmeiro, acarrado. O pastor leva então dias e dias de boa vida. Solta o rebanho do bardo, de madrugada, com estrelas, por ser aquela hora que os animais se tratam na pastagem. Cedo ainda, a erva está branda, mais macia, o gado pega-lhe melhor e não encalma. Logo, porém, que começa a aquecer, seguem as reses para o calmeiro, e aí ficam agarradas a maior parte do dia, até que de novo começa a refrescar. Então volta de novo para a pastagem, e só muito depois de sol posto, quase sempre já com estrelas, entram nos bardos, quando não ficam a prado, dormindo mesmo na pastagem.
O gado ovino anda, regra geral, repartido por três rebanhos. O rebanho dos carneiros, que só numa pequena parte do ano se juntam com as ovelhas para cobrição, o rebanho das ovelhas que criaram, ou alavão, e o rebanho das que não tiveram crias, ou alfeiras. As ovelhas do alavão vão amamentando as crias até à altura em que se faz a apartação e começa a ordenha. A apartação consiste na separação dos borregos das mães, para que se possa aproveitar todo o leite destas. Feita a apartação, os borregos ficam em rebanho à parte até serem vendidos e começa-se a ordenha. Antes, porém, desta começar, todo o rebanho é derrabado a fim de tornar mais fácil e mais rápido esse trabalho ao pastor. Este é obrigado à ordenha de todo o rebanho, sempre que o número de cabeças não seja superior a 350. Quando, porém, este número é excedido, serão então já dois que nela participam. Para serem ordenhadas, são as ovelhas metidas em apriscos, compridos currais em forma de corredor estreito, feitos com rede de alfirme suportada por estacas de madeira. A entrada é um pouco mais larga abrindo em semi-círculo, para tornar mais fácil o acesso do rebanho ao aprisco.
Uma vez no aprisco, começa o pastor a ordenhar para dentro do ferrado, vasilha apropriada para receber o leite, o qual, uma vez cheio, é despejado para o cântaro de lata. À medida que vai fazendo a ordenha, o pastor deixa para trás as ovelhas já ordenhadas, e assim percorre todo o aprisco. O feitio deste tem mesmo por finalidade permitir ao pastor ordenhar todo o rebanho sem grande dificuldade, e sem que seja possível passarem-se-lhe ovelhas para trás, senão depois de já terem sido ordenhadas. Uma vez nos cântaros, é o leite transportado para o monte ou até ao comprador, caso tenha sido vendido. Impróprio para o consumo directo, é todo ele empregado no fabrico de queijo.
Quando o tempo começa a aquecer e o calor começa a ser mal suportado, carregada com a lã que durante um ano inteiro foi crescendo e agora, já comprida, a sufoca e encalma, procede-se à tosquia. Arma-se então um bardo em sítio apropriado, traz-se o rebanho, e os tosquiadores começam aquele serviço já há muito apetecido pelas ovelhas. Munidos de suas tesouras e apernadas as ovelhas, lá as vão desnudando, aliviando-as dos seus pesados velos, agora já mal suportados. Em dois ou três dias a tosquia fica pronta, as ovelhas, mais leves e satisfeitas, parecem outras já, e a lã, formando velos, é ensacada. É este mais um dos variados produtos que a ovelha fornece ao seu dono, e não o de menor valor. Em anos de bom preço, é ele até um dos mais valiosos.
Além de tudo isto, é ainda o estrume da ovelha aproveitado como adubo nas terras destinadas à sementeira. O bardo onde o rebanho recolhe todas as noites é para isso armado no alqueive, terreno destinado à seara do ano seguinte; e, porque todos os dias é mudado, vai-se adubando a folha naturalmente (Mário Nunes Vacas, Aspectos Antropogeográficos do Alentejo).


Os Trabalhos e os Dias
  
A tosquia tem um sabor especial descrita na prosa escorreita de Brito Camacho: Mal vinha próxima a época da tosquia, aí por fins de Abril, entrava eu num desassossego enorme, aflito por saber o dia certo em que chegariam os tosquiadores. Meu pai não mo dizia, o compadre João Catarino quase nunca mo podia dizer senão de véspera, porque o não sabia mais cedo.
Era um espectáculo que me entretinha muito, e sobre todos os outros em que o gado entrava, tinha a vantagem de durar uns poucos de dias, mais ou menos conforme o número de tosquiadores, porque lá quanto ao número de cabeças ele pouco variava de ano para ano.
Na véspera, ao cair da tarde, fazia-se o tendal, com braçados de lenha, servindo de porta, em geral, umas gangalhas velhas, deitadas. O chão era muito bem varrido, depois de regado, para que a lã fosse, o menos possível, suja de terra.
No dia seguinte, muito cedo, mas já com o sol fora, vinha todo o rebanho ao monte, só ficando no tendal as cabeças que poderiam ser tosquiadas até à noite, fazendo-se o cálculo sobre a base de vinte cabeças por homem.
Os tempos, hoje, são muito diferentes: os homens ganham muito mais e trabalham menos, e por muito pouco que trabalhem ainda reputam exíguo o seu salário. Um tosquiador, naquele tempo, ganhava o máximo de dezassete vinténs, a seco; hoje ganha, também a seco, entre dez e quinze mil réis. Com esta circunstância agravante – naquele tempo um homem tosquiava, como já disse, o mínimo de vinte ovelhas, hoje tosquia, em média, uma dúzia, pois que em certos dias nem à dúzia chega. 
(...) à hora de começar a faina, estavam empioladas tantas cabeças quantos os tosquiadores, e neste serviço colaborava eu, agarrando as ovelhas pelas pernas, e agarrando os carneiros pelos cornos. Era trambolhão de meia-noite, principalmente quando o compadre João Catarino, segurando um carneiro, me punha em jeito de lhe pegar de cara ou de cernelha, largando o bicho quando eu lhe dizia, pesporrente como um valente moço de forcado – agora, compadre João!
Está bem de ver, sucediam estas coisas quando meu pai não estava presente, porque o espectáculo distraía muito a família, e o trabalho ficava para trás.
Este serviço, o da tosquia, era o serviço agrícola que se fazia com mais preceitos, uma verdadeira liturgia, rigorosa e complicada, de que pouco ou nada subsiste.
Os tosquiadores formavam quadrilha, rigorosamente subordinada a um mestre. Era este que tomava compromisso com os lavradores – tal dia lá estamos; quem fazia ajustes; quem recebia o dinheiro; quem pagava aos seus homens. Nenhum aprendiz entrava na quadrilha sem autorização do mestre, o qual a não dava sem ouvir a sua gente. Não convinha às quadrilhas organizadas que houvesse grande oferta de braços, porque isso faria baixar os salários; e assim elas regulavam o aprendizado, sem todavia procederem de maneira a estabelecerem, em seu proveito, uma verdadeira tirania, a que não pudesse escapar o lavrador.
(...) Quando chegava o momento de começar o trabalho, pela manhã, estava tudo as postos, cada tosquiador ao pé duma cabeça empiolada, a tesoura na mão, à espera que o mestre desse o sinal de começar, isto é, a primeira tesourada. Se algum imprudente se antecipava ao mestre, pagava uma multa em dinheiro. O que entrava no tendal, alheio à quadrilha, sem licença do mestre, não sendo o lavrador, era multado, e o próprio lavrador, se descuidadamente ia sentar-se no monte de lã, também pagava multa. As ovelhas brancas ficavam todas a um lado, o tosquiador que acabando de tosquiar uma ovelha preta passava a tosquiar uma ovelha branca, sob pena de multa, ao dar a primeira tesourada, tinha que dizer isto: - Em nome de Deus, em branco. Sucedia algumas vezes ficar uma cabeça com uma guedelha de lã, por descuido. O maioral agarrava essa cabeça, levava-a ao mestre que lhe cortava a guedelha, e impunha uma multa ao descuidado tosquiador. A função do maioral, na tosquia, limitava-se a enrolar a lã, formando velos, ajudando algumas vezes o empiolador, que era sempre um ganhão, à escolha do feitor.
Um tosquiador não podia levantar mão do animal que estava a tosquiar, sem licença do mestre, a não ser para dar um fio na tesoura, ou untar as lâminas com azeite. Para isto havia no tendal uma pedra de amolar, pertença do lavrador, e uma candeia com azeite, geralmente azeite de borras, impróprio para a comida. Procedendo sem a observância destes preceitos, fosse qual fosse o motivo porque o fizesse, incorria em multa. Resultavam ou podiam resultar graves inconvenientes de se deixar uma cabeça, por muito tempo, em meia tosquia, parte do corpo já sem a protecção da lã, a uma temperatura baixa, e a outra parte ainda coberta de lã, a uma temperatura mais elevada. E assim este preceito era, no final de contas, uma boa regra de higiene, disfarçada num formalismo que à primeira vista parece infantil.
Às vezes, acabada a faina diária, se o maioral não podia levar as cabeças tosquiadas a juntarem-se ao rebanho, era qualquer servo da casa encarregado de o fazer, e muito instantemente lhe era recomendado que não deixasse chegar o gado à água, se tinha de passar onde ele pudesse beber. Sempre ouvi dizer ao compadre João Catarino: - Aos animais tosquiados faz mal a água por fora e por dentro. Se lhes chove em cima, assim que largam o velo, morrem; se bebem, ainda quentes da tesoura, morrem da mesma maneira, ou mais ainda. Vão lá saber porque é isto?
À hora de largar o trabalho, sol posto, o que dava a última tesourada era obrigado a dizer, ainda com os pés em cima da lã cortada: - Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo! Um padre-nosso e uma Avé-Maria pelas almas, quem souber e quiser. Não o fazendo pagava multa.
 À hora das refeições, todos lavavam as mãos, havendo para uso de todos uma grande bacia de arame e uma toalha de estopa, que alguns dispensavam, limpando-se ao lenço. O mestre tinha que ser o primeiro; se algum apressado metia as mão na bacia, antes dele, pagava multa.
E, afinal, para que era o dinheiro da multa?
Era para festejar Santa Bebianga, do dia da adiafa. O vinho, então, era barato; uma canada custava um pataco. O lavrador sempre mandava distribuir uma ração de vinho; o produto das multas sempre dava para um meio almude, e assim a faina acabava por uma festa bachica, em que todos ficavam alegres e raros se embebedavam.
Também eu pagava multas, umas vezes a dinheiro outras vezes em géneros; nos dias de cosida pagava-se em pão mole e quente, acabado de sair do forno, besuntado de manteiga, um grande bocado a cada homem.
Mesmo o bom tosquiador, o que era perfeito na sua arte, deixava algumas vezes resvalar a tesoura da lã para a pele do animal, ferindo-o sem gravidade. O curativo fazia-se com uma cortiça queimada, que se passava na ferida, molhada em azeite, até se fazer negra a superfície sangrenta (Brito Camacho, Memórias e Narrativas Alentejanas).

Mas a mesma tosquia ganha singeleza na poesia de Francisco Bugalho: Rente, rente, rente/A tesoura corta./E na tarde quente,/Junho está à porta.//Vem do campo em volta,/Mágico fulgor/De aroma, que solta/O feno inda em flor.//Aperna-se o gado,/Pra tirar-lhe a lã./Ficou encerrado/Desde esta manhã.//Rente, rente, rente;/Que a tesoura corta/E, na tarde quente,/Junho está à porta.//Um halo de neve,/Espuma ou algodão,/Envolve de leve/As reses no chão./Na luz forte, em roda/Zumbem as abelhas./E há balidos soltos/E tristes de ovelhas./E ao soltar aquelas,/Livres, já, dos velos,/parecem gazelas,/Em saltos singelos.//Rente,rente, rente,/A tesoura corta./E, na tarde quente,/Junho está à porta (Francisco Bugalho, Poesia).

A tipologia e funções específicas dos pastores alentejanos são-nos dadas por Silva Picão: Pondo de parte os ajudas, que nada oferecem digno de menção, os pastores constam; do maioral das ovelhas, que é o chefe; do carneireiro, que guarda os carneiros, e de dois, três ou quatros entregues mais, sem denominação especial, por igualmente a não terem os rebanhos que apascentam. Quando se apartam os alavões – rebanhos de ovelhas que na primavera se ordenham para o fabrico do queijo -, os entregues e ajudas respectivos, chamam-se alavoeiros.
Os pastores – além de guardarem e apascentarem o gado ovino – cumpre-lhes mais o seguinte: mudar os bardos, ou redis, uma ou duas vezes por dia, conforme a época, para aproveitamento dos estrumes; limpar as reses das cagaitas volumosas que se lhe formarem na lã, próximo das tetas, dos testículos e da cauda; catarem, com atenção, o seu rebanho, logo que o suspeitem invadido de ronha ou de bexiga, marcando as cabeças que encontrarem atacadas, procedendo ao seu imediato curativo e repetindo-o enquanto for necessário; finalmente, regular as horas da solta e recolhimento dos animais, em harmonia com a época, escassês ou abundância de pastos, condições do gado e estado do tempo.
Maioral – Chefe de todos os pastores, apascenta igualmente um rebanho, sempre o que demanda maior dedicação e cuidados. Assim, no outono e no inverno, anda com o das ovelhas próximas a parir e as recém-paridas, ou seja a chicada mais nova. Na primavera e no verão, guarda o do borregos ou borregas, e na falta destes, outro que também careça de pastor experimentado.
Afora os deveres comuns a todos os pastores, cumpre-lhe: de acordo com o lavrador e em resultado das ordens e autorizações que tiver dele, indagar do passadio e do estado sanitário dos rebanhos, fiscalizando os entregues e recomendando-lhes o que for conveniente; empregar as cautelas possíveis para diminuir as probalidades de invasões epizoóticas, sempre que essas doenças existam nos gados dos vizinhos; esforçar-se por atenuar semelhantes estragos quando por ventura a moléstia acometa aqueles que estão sob a sua responsabilidade, já obrigando os entregues a entregarem os tratamentos que lhe forem recomendados, já auxiliando-os nesse propósito. Mais lhes compete: contar, de vez em quando, o gado todo, inquirindo do número de reses mortas e das supostas ou verdadeiras causas que as vitimaram, participando tudo ao amo, prender as ovelhas recém-paridas que rejeitem as crias para, deste modo, conseguir que as aceitem afinal, como é provável; dobrar os borregos, quando sejam menos que as ovelhas, por efeito de morrinhas; assinalar nas orelhas o gado novo e bem assim cortar-lhes o rabo, se este antigo costume ainda persistir; ferrar no focinho, com o ferro da “casa” e durante o inverno, os malatos e malatas; com o auxílio dos entregues, rabejar, nas vésperas de se apartarem os alavões, as ovelhas respectivas, tosquiando-lhes a lã dos úberes e partes vizinhas que estorvem o ordenho; fazer as apartações consentâneas a cada época e às necessidades de ocasião; escolher os borregos para carneiros de casta; capar os malatos e os carneiros incapazes de prosseguirem como reprodutores; refugar as badanas, assinalando-as; marcar a cal branca o gado preto e a pês no branco, todas as reses lanígeras, uma vez por ano, quinze dias depois da tosquia; repetir o mesmo sinal ou pôr ainda outro, nas partidas e gado que forem a qualquer feira; assistir enfim ao tendal da tosquia superintendendo esse serviço (Silva Picão, Através dos Campos).  


Pastores do Alto, Pastores do Baixo


Dois textos jornalísticos-literários descrevem genericamente a vidas dos pastores. Vejamos um de minha autoria, com origem em recolha etngráfica de 1980 e publicado em 1994 no Jornal Terras do Cante: Era o verão de Julho. Na noite quente de sufoco nem uma folha bolia. Ainda vínhamos longe e já os cães ladravam anunciando a nossa chegada. Por entre os vultos medonhos das azinheiras, as luzes do carro deixavam ver os coelhos novos fugindo e alguns pássaros assustados que esvoaçavam. Quando chegámos já os pastores sustinham os rafeiros com os cajados e algumas palavras de acalmia - Quietos, que é gente amiga!
Junto da choupana de colmo velho, repassado do sol e da chuva, sentados em mochos de azinho, pusemo-nos à conversa. O ti Ramos tomou a dianteira e puxou do saber como quem puxa da vida para a dar a beber - Aqui à volta - dizia ele na sua voz sentida, pela alegria de ter quem o escutasse - , Cabida, Alfarrobeira, Carrascal, Camoeira, Boa-Fé e Peramanca, é tudo chão areento, pedra solta de granito, terras fracas. A pastagem mal dá para as ovelhas. Agora para Setembro, se o tempo ajudar, já elas terão alguma coisa que comer - Águas novas verdadeiras, pelo S. Mateus as primeiras.
A noite não refrescava e o ti Ramos de camisola de alças, branca e de fina rede, mostrava o peito suado que, de vez em quando, limpava com um lenço velho amarrotado.
É assim - continuava ele lendo na memória as palavras certas que oferecia à minha curiosidade de aprendiz -, se a chuva é demais, andam aí os animais pateando com a doença, até que deixam de andar. Vai-te embora Janeiro, que ainda cá deixas a ovelha e o carneiro; mas vem aí o teu irmão Fevereiro, nem a ovelha nem o carneiro, nem a pele em cima do ganadeiro - apodrece tudo com água.
Perto ouvia-se um piar estranho que rapidamente o ti Manel identificou.
São os noitibós, só de noite é que cantam. A gente mal dá por eles, parecem paus e são mais pequenos que perdizes - têm pés e pernas mas não andam. Com aquela choradeira fazem mangação dos ganadeiros - Algaravão, tão ruim, tão ruim, tão ruim.
A conversa estava boa e o ti Ramos pegava-lhe agora para explicar que as trovoadas que vêm de Espanha, a água de pedra e os ventos do lado do pego, é que são o pior; porque a geada quando vem no tempo certo até faz bem às searas - Geada em Janeiro é estrumada de carneiro. Em Abril pintam-se os campos de mil flores e o gado até corre de contente com tanta comida - trevo, orelha de lebre, palanque, rabo de zorra, magarça, erva azeda, cornicho de cabra, rabo de gato e trigo de perdiz. Abril, águas mil, coadas por um candil (é a velha que está lá em cima a peneirar). E então se o Maio vem a favor, o patrão pode esperar que a carteira engorda de certezinha - Maio pardo enche o saco e farta o gado. P’rá seara gradar - Maio pardo ventoso faz o ano formoso. Lá para Junho já as searas começam a secar e se o vento é espanhol - S. João, o vento suão faz bom pão.
Enquanto falavam os pastores ouviam os sons da noite, cheiravam o ar e observavam, cismando, o céu estrelado.
Os seus olhos e ouvidos e o nariz acostumados, pareciam os dos animais noctívagos capazes de reconhecerem qualquer sinal a quilómetros. Afagavam o pêlo dos cães e, de quando em quando, lá ia uma pingota de água fresca - barril à boca e ouvia-se correr em bica.
Dessa chuva que cai e faz correr os ribeiros - dizia-me o ti Manel abrindo a boca em jeito de sono -, ficam aí uns olharões que têm erva todo o ano, porque quando vem o Verão isto aqui seca-se tudo, e se não fossem alguns chafarizes e poços o gado ia-se todo com sede.
A ribeira de Valverde fica lá muito longe, e o que isto era de água senhor! Havia aqui p’ra cima de trezentos nascentes. Agora p’ra lhe darmos de beber temos que passar horas a tirar água com a cegonha e o caldeiro e não as damos satisfeitas.
A noite ia alta e, para gente que tinha que se deitar com as galinhas e levantar-se com os galos era hora da deita. Mas como a prosa estava a agradar, o ti Ramos falava-me agora de quando, com nove anos, já ajuda do pai, aprendia a vida de pastor. A escola, depressa me cansei dela. Meu pai, como precisava de mim, puxou-me p’rá lida e, com o farnel que minha mãe me arranjava e uma varinha de zambujo, lá comecei a andar atrás delas. Ainda trabalhei com uma parelha mas o meu destino era este.
A música bucólica das esquilas e chocalhos ouvia-se perto. As ovelhas no aprisco esperavam a madrugada para a ordenha, mas o ti Ramos não desistia de me contar a sua  vida. Casei cedo e ao fim de nove dias de casado estive três meses sem ver a minha mulher por causa destas velhacas. Tinha que levar os rebanhos para onde havia pastagem, ao rigor do tempo - de Verão, calor de rachar e um homem a desfazer-se em suor; d’Inverno, frio, chuva, vento e o meu abrigo era debaixo das azinheiras com o aconchego duns safões, embrulhado num gabãozito ou numa samarra. Nas horas de tristeza puxava da navalha afiada e punha-me a fazer desenhos na cortiça ou no pau de buxo, e às vezes saíam caixas bonitas, colheres prendadas, que oferecia à mulher no regresso. Outras vezes punha-me a inventar décimas. Quer ouvir estas?

Francisco José Ramos
Na herdade do Zambujeiro
Não foi capaz de vencer
Um ratinho faroleiro

Andava arranjando a comida
Aquele rato valente
E disse o rapaz de repente
Vou-te a acabar com a vida
Temos a zaragata seguida
Já os dois brigar vamos
Dando pulos que nem gamos
E muitas voltas no sentido
Pois ainda pelo rato foi mordido
Francisco José Ramos.

À roda dum chaparro
É que foi a brincadeira
Pulava de toda a maneira-
Ah, ladrão que não te agarro
Mas se nas minhas mãos te ençarro
Deixas de ser tão altaneiro
E serias tu o primeiro
Que me abalavas fugindo
Pois ainda ficou existindo
Na herdade do Zambujeiro

Apanhei-o com a mão
Para o pôr em degredo
Mas ele trincou-me um dedo
E de repente pulou p’ró chão
Viu-se em grande aflição
Com o seu nobre saber
Foi-se num buraco esconder
E dos olhinhos fez as luzes
E fiquei eu fazendo cruzes
Não fui capaz de o vencer

Com onze anos de idade
Eu meti-me nesta baralha
Eu não puxei da navalha
Não fiz a minha vontade
Ainda ficas em liberdade
Passeando no ribeiro
Mas olha que eu sou ganadeiro
Ainda por aqui torno a vir
E ficou-se de mim a rir
Um ratinho faroleiro

O ti Ramos ainda fumou o cigarro da sossega e, depois do ti Manel molhar as goelas, deitados numas enxergas, para ali adormeceram à espera da aurora.
Ainda mal se via e já os pastores lavavam a cabeça toda num cocho de cortiça, suspenso numa tripeça de azinho, preparando-se para a trasfega da ordenha. Desencasqueadas as mãos com lixívia, o rebanho num repente alvoroçou-se, levantando uma densa poalha. Enquanto iam espremendo os amojos com o maneio ritmado da muita experiência, ouvia-se cair em esguichos no ferrado o leite alvo e grosso, e como eu não os largasse com perguntas, lá iam falando como podiam, pois dobrados pelos rins a clareza da voz perdia-se.
Quinhentas ovelhas dão p’rái cento e cinquenta litros de leite. Faz-se muita força nos pulsos e dão uma grande sova na gente. Quando chegamos cá acima vimos moídos. Estas não têm muito leite e mesmo essas que têm não dão jeito como as outras. Quando o leite lhe foge p’ró espinhaço poêm-se malucas. Venha cá o cavalo! Selvagem! Olha p’ráquela, está desencabrestada. Ó, aí - Era o ti Manel praguejando. Entre tantos ovelhas parecia mentira os pastores conhecerem-nas todas pelos nomes. É verdade a palavra evangélica que diz: O bom pastor conhece as suas ovelhas.
O dia clareava lentamente e, para não perderem a fresquidão do amanhecer, os homens redobravam de força. O ti Ramos, entretanto, ensinava-me a prenhez dos animais, pois se a cobrição é no Verão (a ovelha anda com o borrego na barriga cinco meses), no Inverno é que as crias nascem, e ao ar livre, que vêm lãzudas. Esta está a dormir! Cães, poucos, que o pão está caro. Esta é das minhas. Ganadeiro sem puvilhal não andava aqui.
O ti Manel lembrava-se da paga d’outrora comparando-a com os vencimentos de hoje. Antigamente o patrão dava pastagem para setenta ovelhas e as comedias - trinta quilos de farinha, dois litros de azeite e duzentos escudos por mês, mais cinco alqueires de trigo por ano e, à vezes, um toucinhito de porco. Esta ordinária hoje está bruta! Olha, a Velha já não pode com as tamanquinhas.
Agora - dizia-me o ti Ramos um pouco rouco do pó que lhe entupia a garganta - ganhamos cinco contos e seiscentos por mês e pastagem para sessenta ovelhas. É miséria, mas noutro tempo ainda era pior.
Já quase no fim dos centro e trinta metros do aprisco, estafados da sova, os pastores ainda encontraram alento para me dizerem: Até às nove horas vão pastando, mas depois passam o calor à sombra das azinheiras - fazem da noite dia e do dia noite.
Acabada a trasfega, recolhidos os ferrados cheios de leite ainda quente, ouvia-se da boca do ti Manel, em jeito de fim de labor, a oração - Seja louvado nosso Senhor Jesus Cristo. E o ti Ramos respondia-lhe - Assim seja. Chegara então o momento de coar o leite para dentro dum cântaro e de lhe deitar o químico para não azedar, até que o viessem buscar para o levarem para a rouparia. A manhã crescera e o rebanho já se via ao longe na planície com o ti Manel gritando aos cães e lançando às patas de uma ovelha tresmalhada o gravato. A música da terra enchia o ar luminoso dessa alegria que, misteriosamente, nos desfaz com lágrimas - dor e prazer irmanados, estranhos sinais da natureza terrestre do homem.

Vejamos outro texto da autoria de João Mário Caldeira com o título “O guardador do tempo”: O pastor alentejano, habitualmente chamado de moiral, é um verdadeiro tesouro do património humano da região.

Entrava noutros tempos ao serviço das herdades com um contrato anual que se continuava muitas vezes por toda a vida, se por informes do feitor ganhava a confiança do patrão.

A entrada ao serviço do proprietário não se fazia pela Santa Maria de Agosto, como os restantes criados da lavoura. Os pastores eram concertados em casa do patrão no dia de S. Pedro por razões que se prendem com o ciclo de maneio do gado ovino. S. Pedro ficou assim ligado à vida dos pastores desde tempos muito antigos, acabando por se consagrar como seu patrono de direito.

(...) É como uma estátua na planície. (...) Chapéu preto de aba larga, o pelico e os safões de pele de ovelha. Calças de saragoça metidas nas botas de atanado. O cajado de volta, em madeira de faia. Às costas a mochila de pele surrada, o surrão. Com tirantes apanhados pelo peito. Atrás o seu melhor ajuda, o Serra d’Aires, cão especialista na condução de gado.

Aguenta a pé firme o vento cortante de nordeste, o charôco, que no inverno greta a pele e se entranha na carne. Estoicamente suporta os sóis alentejanos, às vezes sem uma sombra, quando o suão ou vento espanhol “esfarela os ossos”, como disse José Régio. O enorme guarda-chuva de cotim azul que usa sempre a tiracolo livra-o das maiores torreiras e das chuvas repentinas.

Dormia noutro tempo ao lado das ovelhas num abrigo transportável, a feixinha, cioso da riqueza que lhe davam a guardar.

A feixinha era um resguardo de precária construção. Resumia-se a duas peças, dois engradados de ramos de azinheira de forma rectangular, onde se aplicavam camadas sobrepostas de junco para facultar a escorrência das águas. Os dois corpos encostavam-se um ao outro pela parte superior e mais extensa, formando uma espécie de bivaque, tenda de campanha de estrutura vegetal.(...) A feixinha não garantia qualquer isolamento térmico, mas protegia do sol e da chuva.

Já lá vão os tempos em que nas gélidas noites de inverno se viam nas breves elevações da planície fogaréus a anunciar os abrigos dos pastores. Lenha de azinho não faltava, e o moiral deixava aceso toda a noite, frente à feixinha, aquele que foi sempre o melhor companheiro do homem, o fogo milenar. Nele cozinhava a ceia frugal, à volta dele comia, sentado no mocho de cortiça. Nas suas brasas acendia gostosamente o último cigarro antes da deita, sob uma abóbada de mil estrelas.
Exorcizador dos fantasmas que habitam a noite dos homens, compensador do desconforto e do frio, o pastor deixa o lume aceso até arder o último pau de azinho. Como um altar votivo a Endovélico.
Sob o abrigo precário, na enxerga de palha de centeio armada em cima de estacas de azinheira, continua a remoer a solidão dos dias. Deita-se vestido, tapado com a manta de lã e o pelico, se é inverno. Adormece num sono breve, sempre suspenso pelo berro ou chocalho de uma ovelha incomodada. O ladrar do rafeiro, guarda fiel nas horas más, deixa-o de sobreaviso.
Ao lado da cama larga o chapeirão negro que imediatamente enfia logo que põe os pés no chão. Levanta-se ao som do galo, mal dormido. “Ao romper da bela aurora sai o pastor da choupana”. Como primeira refeição de inverno prepara ao lume as migas canhas acompanhadas com leite acabado de ordenhar ou a açorda de alho rescendente. No verão, com a manhã ainda mal refeita da canícula dos dias, pisa alho com sal na pelangana vidrada, deita-lhe um fio de azeite, duas colhes de vinagre e água que abonde. Miga nesse caldo fatias de pão endurecido que tira do alforge e come com satisfação o caspacho ou vinagrada refrescante.
As ovelhas permanecem a seu lado na cerca de rede que o pastor vai mudando de tempos a tempos para estrumação uniforme da terra. Ao esterco de ovelha se deviam as férteis terras de malhadio ou malhadal, onde os almocreves deitavam com mais esperança a braçada de semente.
De inverno o pastor solta as ovelhas quando o sol já vai alto para deixar secar no prado, a orvalheira. De Verão, logo que rompe o sol, as ovelhas deixam de comer, por isso a volta do gado tem que ser feita a meio da noite, quando o ar refresca os pastos. Então, como fantasmas, o moiral e o cão cirandam na campina atrás do som dos chocalhos de ovelhas imaginadas, obrigadas a matar de noite a fome que pertence aos dias. O entendimento que tem do ritmo biológico dos animais que apascenta, a decifração de céus e ventos, o compasso de sóis e luas, o pulsar das estações são saberes que domina na perfeição, aprendidos desde criança quando começa como ajuda de pastor. Tem da botânica um sentido prático e utilitário, há ervas melhores e ervas piores consoante a qualidade que acrescentam à teta da ovelha. Esse conhecimento aprofundado do rebanho e dos prados,, todo o seu trabalho continuado, dia e noite, é tido ainda como pedra-de-toque para a qualidade do leite. Dizem os roupeiros que o leite funde de acordo com os méritos do pastor. No úbere da ovelha se começa a fabricar, antes de tudo, a qualidade de um bom queijo.
Atrás do gado, os dias são tão grandes quanto a sua resignação. Fica com “uma nódoa no peito de se encostar ao cajado”. Farto de estar de pé, descansa o corpo assentando-se numa pedra ou num marco de propriedade, em lugar cimeiro onde não perca de vista o rebanho movediço. Os olhos percorrem o gado de animal em animal, mecanicamente. O pensamento gira por outras paragens, acompanhando o sonho do homem solitário.
Às vezes queima o tempo engendrando poesia. As décimas são a forma usual com que verseja. Os assuntos são vários, crítica social, locubrações sobre a vida e sobre o mundo, não raro motivos eróticos que o compensam do isolamento. Versa a sua rima por vezes o absurdo num desejo de subverter a ordem das coisas como revolta ao ritmo inexorável da sua existência. Outras vezes estão os versos repassados de um lirismo onde afloram as “melancolias do campo”.
Em monólogos infindáveis decorre a vida do moiral da planície.
Quando calha saca da faca e escava baixos-relevos em cornos de vaca. Ficaram célebres as chaves ornamentadas à navalha pelos pastores do Alentejo. Nelas se transportava o azeite e o vinagre para as comidas no campo. Em secções mais pequenas de corno, as azeitonas, o sal, o chumbo, a pólvora do caçador. Eram recipientes duráveis, estanques, de fácil transporte, resistentes aos maiores tombos que levavam nos caminhos. A tampa de cortiça com pega de pau de freixo ou de esteva seca, era também profusamente trabalhada.
Esculpe outras vezes colheres em pedaços de madeira ou em corno de carneiro amolecido ao fogo que enfeita com arabescos.
Em todos os trabalhos deixa a marca dos dias, como se ao gravar a data de fabrico pudesse balizar a solidão temporal onde se afoga. Na imensa planura o tempo é um conceito sem medida, como o espaço. O alentejano nunca diz que tem ou não tem tempo, diz antes se tem ou não tem vagar. E quase sempre o tem. Miguel Torga reparou nisso quando descreveu o Alentejo. Diz ele que a região “é um imenso relógio de sol onde o homem faz de ponteiro do tempo”.
O pastor é o próprio tempo, náufrago dos dias na enorme extensão do descampado.
Enquanto o gado busca no prado a erva mais tenra, a semente mais apetecida, o pastor entretém-se numa criatividade que é quase sobrevivência. Assim ocupado “passa mais depressa o dia”, como diz a moda cantada na taberna da aldeia.
À taberna chega o pastor de fugida, numa tarde de sábado quando vem mudar de roupa ou por ocasião duma festa. Aparece como um trânsfuga, em sobressalto. Bebe uns copos com os companheiros de ocasião e ala para o pé do gado que ficou no acarro dentro da rede. Mesmo alvoroçado com os vapores do álcool, às vezes com copos a mais, o pastor não pode faltar. Se a demora é mais prolongada, todo o gado berra por pastagem. O estômago da ovelha tem lá dentro um relógio que não aguenta as veleidades do moiral.
A vida do pastor, sempre presa e necessariamente solitária não lhe granjeava simpatias, especialmente entre o mulherio, que preferia para companheiro o ganhão ou o almocreve. Estes eram outra gente, mais disponível, menos pensativa, com um ar mais alegre e outro modo de trajar. Tinham conhecimentos mais diversificados na faina dos campos onde aprendiam a conviver com as mulheres, especialmente nas ceifas e na apanha da azeitona.
O garbo de um moço de lavoura, aspirante a almocreve, de safões de pele lisa, atados à volta das calças de cotim que metia nas botas altas de bezerro, camisa de quadrado miúdo com lenço branco à volta do pescoço, fazia tremer de emoção qualquer moça camponesa. A figura ensimesmada do pastor, meio eremita, de vestimenta pesada, com fama de fauno na relação com ovelhas, cheirando a bodum, afastava pelo contrário as raparigas casadoiras.
Daí achar-se estranho e no mínimo lamentável que eles alguma vez ganhassem preponderância sobre outros elementos da classe trabalhadora como lamenta uma antiga quadra que ainda hoje começa as modas: “Na aldeia da Amareleja/quem manda são os pastores/já querem roubar as moças/aos pobres trabalhadores”.
Só razões ligadas à sua condição de vida poderão, como se disse, estar por detrás de tal discriminação, já que o pastor tinha entre os demais criados da lavoura uma situação económica privilegiada. Além de ganhar soldada e comedorias, era-lhe consentido possuir pugulhal, isto é, ter um certo numero de ovelhas suas no rebanho do proprietário.
Em tempos passados, nas herdades dos grandes lavradores alentejanos que possuíam alguns milhares de cabeças de gado divididas em vários rebanhos, havia que estabelecer regras de hierarquização entre os pastores. Para se ter ideia do que na região se passava há mais de um século, sigam-se os apontamentos do Conde de Ficalho (1837-1903), escritor e grande proprietário do termo do Serpa que nas suas Notas Históricas acerca de Serpa nos elucida sobre o assunto. Diz ele que rabadão, do árabe rabb ad-dham, era o pastor chefe que fiscalizava e inspecionava todos os rebanhos de ovelhas do mesmo dono. Maioral é o primeiro pastor de cada rebanho e ajuda é o segundo. Zagal é um rapaz de treze ou catorze anos que auxilia a guardar o gado. É filho normalmente de um dos primeiros, às vezes nem ganha soldada e serve só pelo comer.
Nesses tempos, nas imensas propriedades, tudo decorria num ritmo sazonal milenarmente repetido. Em meados de Fevereiro, ou até antes, dava-se início à ordenha. Tinha o pastor que proceder previamente à rabeja, que consistia na tosquia local de alguma lã suja que podia prejudicar o acto da mungidura. Rabejadas as ovelhas e apartados os borregos para uma pastagem distante onde as mães não os vissem ou ouvissem, podia iniciar-se a dura faina de mungir o gado. Os animais eram então encaminhados para um curral de rede com uma saída alongada em forma de corredor que se chamava aprisco onde em fila indiana, todas as ovelhas eram obrigadas a passar. Os dedos industriados do pastor obrigavam a que cada uma aí deitasse a sua quota do líquido precioso. O aprisco era, além de corredor, um escorredouro de leite.
Quando pela primeira vez o leite quente da ovelha esguichava para dentro do ferrado, podia dizer-se que começava o alavão, palavra derivada do árabe al-labban, leite, que no Alentejo abrange todas as tarefas relacionadas com a produção de queijo. Ao pastor não compete senão ordenhar (e muitas vezes até nem isso), pois que o fabrico do queijo no monte da herdade estava a cargo de um outro especialista, o roupeiro (João Mário Caldeira, A Margem Esquerda do Guadiana – As Gentes, a terra, os bichos).


A Arte de Queijar


Na sequência da transcrição acima, podemos rever os trabalhos particulares da ordenha e da arte de queijar a partir do texto de J. A. Capela e Silva, Os Rompeiros: Quando chegava o tempo das queijeiras, o Merendeiras, estivesse lá onde estivesse, dava um jeito à vida, e ia caminhando da aldeia com a copa.(...) E lá ia a caminho da aldeia com tenções de não voltar tão cedo. E não se enganava. Em breve lhe falavam para roupeiro com bom ajuste, porque era demais conhecido o seu saber na arte de queijar.
Apartam-se os borregos, os da casa a um lado, os dos puvilhais a outro, e com as ovelhas desafilhadas, forma-se o alavão.
Asseia-se a queijeira. Paredes com quatro demãos, pezinhos de roxo-rei, pingas tiradas com azeite, azadas esfregadas, cinchos que parecem de prata enfiados na cana, almofariz novo para o sal, comprado no S. Mateus, banca escaqueada, cântaros polidos com flor de cinza, alguidares e pelanganas armados na parede a formar castelo, latas para requeijões, peneiro de crina em cima da cruz da cama, panos e mais trapiça correlativa, eis os complicados preparatórios da oficina tecnológica que ia ter por chefe o João Ameixa, mais conhecido pelo anexim de Merendeiras.
Ainda a manhã lá vem Deus sabe onde, e já o Merendeiras escarranchado na besta do leite, leiteiras de esparto inchadas com os dois cântaros, ia a caminho do aprisco.
Rompeiros se chamavam antigamente aos entregues das queijarias. Eram eles que despertavam as famílias nos montes, que abalavam primeiro, que rompiam campo fora, mesmo na época de lavouras ou de ceifas, que requerem madrugar. Eram os rompeiros. O tempo deturpou o nome mas o estilo ficou.
O alavão encerrado de véspera, mancha esguia na terra do alqueive, sopra furiosamente, nesse respirar característico de monstro constipado e ranhoso. As ovelhas em massa compacta que não deixa passar um chapéu com caranços da filharada que lhes arrebataram, estão cansadas de berrar. A chegada da besta do leite, e do roupeiro, ouvindo o tic-tac do chocalho, o balar em último arranco, angustioso, redobra.
O ar húmido da manhã, e o murmurar da ramaria do arvoredo, parece que adensam aquele desvairamento comovente, mais carinhosas, de olhares esgazeados, suplicando a restituição dos filhos que os homens lhes arrebataram. Eh! Moirááááál !! Eh! Lááááá!! Seja louvado Nosso Senhor Jesus Cristo! Venha Vocemecê com Deus, mano João!
Começa o ordenho. As ovelhas são agarradas pelos amôjos e escarranchadas sobre o ferrado. Ouve-se o esguichar do leite... e os dois homens, roupeiro e alavoeiro, ombro a ombro, soltando estribilhos, lá iam passando as ovelhas para trás...
(...) Ao nascer do sol já o roupeiro está de volta. Logo que chega à queijaria, faz lume para aquecer as águas, e entretanto dispõe as coisas para queijar o leite. Depois mete os cântaros na panela de água quente, e mexe com uma cana o leite, até ficar morno. Então ata na boca da azada os dois coadores, põe sobre eles dois punhados de sal, um por cada cântaro, e côa o leite que vai dissolvendo e arrastando o sal. É a esta operação que chamam salgar na presa. Por fim lançam o cardo – água de maceração do cardo de coalhar – que é também coado no mesmo coador do leite, tapam a azada, envolvem-na num cobertor, e deixam-na próximo do lume o tempo necessário para coalhar o leite.
Logo que a coagulação se realizou, tiram por duas vezes a coalhada da vasilha, e estendem-na na banca, onde é calcada à mão, para se lhe extrair o soro, começando então o fabrico do queijo. Fazem uma bola com as duas mãos, que depois de bem espremida, é colocada no cincho. Por fim polvilham os queijos de sal, e vão para o caniço.
Depois fazem os requeijões, levando ao lume no tacho do atabefe, o soro que ficou do queijo, que é mexido constantemente com cana, até sobrenadar o requeijão. Retira-se a vasilha do lume, e com uma colher própria, vão enchendo de cogulo as tradicionais formas, ou lançando a massa em panos próprios a que depois juntam as pontas, e põem a escorrer (J. A. Capela e Silva, Ganharias).

No que respeita ao fabrico do famoso queijo de Serpa, é importante o rigoroso texto de João Mário Caldeira, que nos dá, em palavras de verdadeiro sabor alentejano, os costumes da Margem Esquerda: O roupeiro é assim chamado por trabalhar na rouparia, oficina onde se fabrica o queijo de ovelha na Margem Esquerda do Guadiana. Esse local, por sua vez, recebe tal nome por utilizar roupa em grande quantidade. São os coadouros, panos de lã com os quais se filtra o leite, as cintas, tiras brancas de pano cru que servem para cingir o queijo, as fraldas onde dependurado escorre o requeijão.
Repetidamente lavada, toda essa roupa tem estendal permanente nas imediações da queijaria. Daí a razão do nome dado às fábricas artesanais de queijo desta região do sudeste alentejano.
O roupeiro é um alentejano de laboratório, trabalhador especializado que aprendeu a activar e controlar de forma empírica os complicados fenómenos da evolução bacteriana que transformam o leite em queijo. Esse é, no essencial, o segredo da sua arte.
(...) Era em tempos contratado sazonalmente pelos proprietários da região para dirigir o fabrico do queijo de ovelha nas grandes casas de lavoura. Nas instalações de um dos montes da exploração agrícola montava a rouparia, que funcionava desde meados de Fevereiro até os pastores darem por terminada a ordenha de todo o gado do patrão, coisa que atirava lá para o fim do mês de Maio. Entretanto as tarefas da cura do produto prolongavam-se por mais tempo, no mínimo entre um mês e meio e os dois meses. Para a ajuda de tarefa tão pesada, era disponibilizado outro pessoal concertado na herdade, nomeadamente mulheres e moços do monte.
Na rua do monte era plantado o arquiz, ramo seco e previamente desbastado de uma azinheira, em cujos galhos se punha a secar toda a roupa utilizada na laboração e os cântaros de lata para o transporte do leite, depois de bem escaldados.
(...) O roupeiro era por isso um estranho, um artista, uma classe à parte entre o pessoal da ganharia do monte, constituído na sua maioria por almocreves e ganadeiros.
Alguém lhe chamou alquimista. Talvez pela misteriosa sabedoria de adicionar ao leite as pétalas roxas da alcachofra selvagem. Pétalas que pisa em almofarizes de pedra, como na antiga alquimia e que deixa em infusão de um dia para o outro até se transformarem num fermento milagroso. Adicionado ao leite, dele nasce a massa e desta o queijo.
(...) Depois de adicionado o cardo até à consumação do produto final, o queijo de ovelha, disco alourado, de crosta branda, rescendente, que responde aos maiores desafios do paladar, vai um mundo de operações.
O alquimista tem de dar lugar ao mago. Somente com os movimentos das mãos o roupeiro vai tirar da cartola que é a queijeira um tesouro precioso.
Para tanto, muitas voltas tem que dar o leite depois de retirado da teta da ovelha.
(...) As primeiras são a filtragem e a coagulação. Delas depende em boa parte a qualidade do queijo que há-de ser.
À filtragem do leite dedica o roupeiro cuidados especiais. Os coadouros ou coadeiros que utiliza são panos muito fortes de lã áspera e grossa, dobrados tantas vezes quantas as necessárias. Na coagem de alguns leites trazidos do local da ordenha em piores condições de pureza, chega o roupeiro a empregar quarenta dobras para cem litros de produto! Mal pareceria que os entendidos viessem acusar o fabricante de ter usado pouca roupa ao encontrarem impurezas no queijo.
Numa das últimas dobras dos coadouros é colocado o sal necessário, que se vai dissolvendo à medida que o leite passa na filtragem. Aproximadamente quinhentas gramas por cem litros de leite. Esta operação tem o nome muito sugestivo de salga na presa.
Após a filtragem e a salga, procede-se às tarefas da coagulação. A sua velocidade tem a ver com a consistência da massa. Não se pergunte ao artesão queijeiro o porquê desta relação. Ele só sabe que a massa fica tanto mais rija quanto mais rápida for a formação da coalhada. Por isso ao adicionar-se ao leite a infusão de cardo levemente aquecida, esta não pode provocar a aceleração exagerada do coalho nem, pelo contrário, demorá-lo excessivamente.
A coagulação rápida gera queijos ásperos, com sabor acentuado a cardo. A sua demora dá origem a queijos de paladar indefinido e de maturação complicada.
A infusão que se adiciona ao leite é feita com antecipação de um dia. O roupeiro pisa o cardo no almofariz com um pouco de sal. Mete depois a mistura num recipiente de louça, adicionando-lhe água quanto baste, deixando-a ficar até ao dia seguinte.
Antes da sua incorporação côa-se a mistura através de um pano para evitar a passagem das partículas do cardo. Depois inicia-se a operação. Com a lentidão de um ritual, o roupeiro vai deitando fermento no asado, vasilha de barro com duas asas onde o leite permanece coado e previamente salgado. Pausadamente a mistura vai sendo homogeneizada com o palheto, espécie de grande espátula de pau. Está-se no domínio da alquimia. A quantidade administrada é ditada pela sensibilidade prática do mestre. Está escrito na sua cartilha que a duração óptima da coalhada deve rondar os noventa minutos. Assim mesmo, sem tirar nem pôr.”    

Coalhada – “Depois de se certificar que a coalhada está realmente pronta, começa a mexê-la com o palheto, fazendo os movimentos sacramentais transmitidos de pais para filhos. São movimentos lentos em cruz, formando espirais, desenhando quadrados, lavrando em diagonal, dentro de uma ordem estabelecida ao longo de milénios. (...) Mexida a coalhada a contento, o roupeiro leva o asado para junto da queijeira, mesa de pinho cujo tampo deve ser previamente aquecido com água a uma temperatura próxima da temperatura da massa que se vai trabalhar.”
O tampo da queijeira – (...) “rectângulo de cerca de dois metros de comprido, com rebordo de vinte centímetros de altura em toda a volta e que num dos lados se prolonga desnivelado em bico aberto, é o teatro de fabrico. É um campo húmido, morno, liso, impregnado da patine da laboração em que o pinho ganhou uma nobreza viscosa, amarelo-acastanhada.
Cinchos – (...) “o roupeiro vaza para os cinchos a coalhada do asado. Os cinchos, de folha ou de madeira, são cintas perfuradas em toda a superfície a que se pode dar aperto gradual, podendo prender na dimensão desejada. Nesta primeira operação estão na largura máxima, muitíssimo acima do diâmetro a que irá ficar o queijo. A massa coalhada vem em bruto, meio endurecida, aos borbotões. Dentro dos cinchos há que migá-la, desfazê-la até se tornar massa uniforme. Só depois o roupeiro inicia o esgotamento do soro, o almece, calcando a massa com ambas as mãos e reduzindo progressivamente o diâmetro dos cinchos.”
Repiso – “Depois do esgotamento do soro, o repiso é a operação que se segue. (...) A massa vai ser novamente desfeita para uma melhor homogeneização. Para tanto tira-se a massa dos cinchos onde já tinha sido bastante espremida e espalha-se de novo sobre o tampo da queijeira, desfazendo-a e tornando a desfazê-la entre as mãos. Depois de repisada quanto baste, a massa volta a ser salgada. Chama-se então à operação salga no repiso.(...) O roupeiro deita uma mão cheia de sal grosso, cerca de 200 g por cada unidade de queijo grande.
Mexida de novo para se misturar com o sal, a massa é de novo introduzida nos cinchos que se apertam progressivamente até prender. Sobre o cincho coloca então o roupeiro a francela para comprimir superiormente a massa e obrigar ao escorrimento de algum almece residual. A francela é um disco de madeira relativamente pesado com um diâmetro de uns 25 cm, tendo às vezes uma pega. À massa assim comprimida dá-se um repouso de cinco minutos.
Confecção – “É agora chegado o momento da confecção propriamente dita do queijo. O roupeiro retira a francela e com muito cuidado começa a calcar lentamente a massa com as palmas de ambas as mãos. A superfície alisada e um tanto endurecida pelo contacto da madeira da francela favorece a operação, não deixando que superiormente transpareça almece.
A partir de agora  tudo é feito com atenção redobrada, para não diminuir a massa enquanto se processa o esgotamento final do soro. À medida que vai diminuindo o volume, vai-se apertando o cincho, para conservar a massa acima do bordo do mesmo. Pode já falar-se, com propriedade, de queijo.
Nesta operação os queijos são voltados duas ou três vezes para que a pressão das mãos se faça de ambos os lados, garantindo um esgotamento mais uniforme. Quando há muitos queijos em preparação ao mesmo tempo, é preciso andar bem para não deixar esfriar a massa, o que dificultaria o trabalho.
Terminada esta fase de fabrico, o roupeiro aperta de novo o cincho para tornar proeminente o queijo acima do bordo e coloca-lhe de novo a francela. Aguarda depois que o mesmo fique suficientemente enxuto.”
Carão – “Ao fim de tantas voltas o Serpa ainda não é um queijo definitivo. Falta-lhe fazer o carão, isto é, promover-lhe uma face suficientemente consistente. Quase uma operação de cosmética! Para tanto, o roupeiro volta a desfazer a superfície do queijo em ambos os lados, picando-a e desfazendo-a bem com a ponta dos dedos até uns três ou quatro centímetros de profundidade. Assim picada e desfeita, essa massa superficial perde mais depressa humidade, endurecendo mais rapidamente que a restante massa de queijo. Comprime-a depois o roupeiro com a mão mergulhada em almece, para lhe aumentar a aderência e dar-lhe mais lisura. Está-se a fabricar a casca do queijo, a crosta, em linguagem mais erudita.
A primeira fase do fabrico está a chegar ao fim. Como operação final, o roupeiro coloca de novo a francela sobre o queijo e aí a deixa até ao próximo fabrico.
Nasce assim entre voltas, exigências e rituais, o Serpa magnífico. Tiremos-lhe o chapéu, mas desse-lhe o privilégio da cura para que se apresente com dignidade aos seus apreciadores.
Cura – A cura é uma fase complicada, corolário do processo complexo da feitura do queijo. O roupeiro tem de pôr à prova dotes acrescidos, onde prevalece a intuição. Diremos mesmo que nesta fase, depois de alquimista e mago, é obrigado a tornar-se meteorologista. Como as instalações são normalmente improvisadas, há que estar muito atento aos problemas de temperatura e humidade. Sondar o sol, adivinhar os ventos, prever a chuva são cuidados a não descurar para manter o ambiente ideal na casa de cura.
O roupeiro vai andar numa roda viva! Controla portas, janelas, frestas, aberturas. Fecha e abre. Rega por vezes o chão para humedecer o ar. O termómetro e o higrómetro são instrumentos que o roupeiro tem à flor da pele. Roga pragas ao suão que sopra de Espanha e faz estalar a crosta do queijo. Solicita por vezes as brisas do sul, que transportam alguma humidade. Outras vezes deseja que a aragem do norte seque mas refresque o ar. Há ocasiões em que o vento norte é o inimigo número um!
Repousando no caniço, plataforma feita com canas, o queijo é nos seus começos um produto sensível, uma criança mimada.
Na fase do amadurecimento atravessa dois momentos que o artesão queijeiro faz questão de distinguir, destinando, a cada um, instalações adequadas.”
Enxugo – O primeiro é o enxugo que se processa nos primeiros dez dias e em que se evapora grande quantidade de humidade. Forma-se durante este tempo a casca do queijo. Esta deve progressivamente ficar fina e lisa mas suficientemente rija e elástica para não rebentar. No interior do queijo iniciam-se as primeiras fermentações. O roupeiro é obrigado a cintar o queijo com tiras de pano cru para não o deixar expandir em demasia, ocasionando o rebentamento da casca recém-formada.”
Cura – “Quando o queijo “começa a trabalhar”, inicia-se o segundo período do seu amadurecimento. O roupeiro muda-o para instalações mais adequadas, segundo regras de bom senso ditadas pela prática, e faz figas para que a fermentação aconteça de modo homogéneo em toda a massa. Mal vai a coisa quando o queijo pára de trabalhar. A esta fase, e só esta, chamam os roupeiros a fase da cura. Dão-na por concluída de dezoito a vinte dias após ter terminado o enxugo.”
Entorna  – “Aproximadamente um mês depois de ter deixado a queijeira matriz, o Serpa tem agora o nome de queijo em toda a acepção da palavra. Voltado todos os dias no caniço para uniformemente enxugar, atingiu a fase da entorna, amanteigado que baste, bom para os que gostam de o barrar no pão. Puxado com a faca fica uma estrada de perfume a derreter-se. O trevo, a erva garfeira, a margaça, o cezirão, a macela que a ovelha campaniça seleccionou nos pastos do sudeste alentejano, deixam nessa pasta rescendente aromas sub-reptícios envoltos na gordura olorosa do leite generoso. O Serpa aí está a desfazer-se na boca. Pela mão do roupeiro, mas com o selo do pastor alentejano!
 Há quem goste dele mais assentado, isto é, de meia cura. Tem então a casca mais grossa, a massa mais consistente, o cheiro mais intenso. Mas é curado e bem seco que o serpa tem mais requinte. É um produto para guardar. Está duro, de sabor concentrado, capaz de aguentar o verão tórrido do Alentejo.
Guarda – “Costumam metê-lo num asado de barro, tapado com um prato poroso cheio de água para não perder de todo a humidade. Não querem que ele chegue a um ponto de dureza em que não lhe entre o gume da navalha.
Para o mesmo efeito há quem o unte com azeite e há quem o barre com uma mistura de azeite e colorau. Este último processo deixa o queijo com uma tonalidade avermelhada que lhe encobre o amarelo torrado da face em que usa apresentar-se. Não fica, no entanto, desvirtuada a qualidade do produto e parece que o colorau tem o mérito de afugentar os piores parasitas do queijo, a mosca e a traça. Há cerca de meio século ainda era esse queijo bem curado, fabricado em tamanho reduzido que fazia parte das comedorias do pessoal contratado nas grandes casas de lavoura.”(João Mário Caldeira, Margem Esquerda, As gentes, a terra, os bichos).


Gastronomia do Borrego e Doçaria do Queijo Fresco e do Requeijão


Honro aqui um alentejano da zona de Estremoz, Mariano Correia, o “Chefe Mariano”, um mestre cozinheiro de alto gabarito, que na cozinha e doçaria alentejanas é um sábio. As suas “18 Receitas de Borrego”, editadas em postais ilustrados pela Câmara Municipal de Estremoz, são a prova da sua valia. Para que constem aqui vão algumas.

 

Borrego

 

Iscas de Fígado de Borrego


1Kg de fígado; ½ de batatas; alho q.b.; louro q.b.; vinho branco q.b.; sal q.b.; um baço de borrego; Banha q.b.; presunto q.b.

Temperam-se as iscas de fígado com os condimentos todos. Raspa-se o baço para dentro do fígado. Fritam-se as iscas e acompanham-se com as batatas meias fritas às rodelas, colocando-se o presunto por cima das iscas. Servem-se em tachinhos de barro.

Ensopado de Borrego


1Kg de borrego; 1kg de batatas; 2 cebolas; 4 dentes de alho; salsa q.b.; louro q.b.; vinagre q.b.; fatias de pão q.b.; colorau q.b.

Refoga-se a cebola com a salsa, o alho, o louro e o colorau, o cravinho e a pimenta, pôe-se o borrego dentro, deixa-se guisar durante uma hora ou uma hora e meia. Depois de estar guisado, deita-se um bocadinho de vinagre, guarnece-se com as batatas cozidas no próprio molho e fatias de pão.

Mãozinhas de Borrego Panadas


12 mãozinhas de borrego; 1 cebola; sal q.b.; salsa q.b.; 2 dentes de alho; ; água q.b.; 2 ovos; pão ralado q.b.

Cozem-se as mãozinhas e, quando estão cozidas, tira-se-lhe o osso. Passam-se por ovo e pão ralado e vão a fritar em óleo muito quente. Acompam-se com limão, laranja e ramos de salsa.

Sarapatel de Borrego


½ Kg de fígado; ½ Kg de bofe; coração q.b.; louro q.b.; 2 cebolas médias; fatias de pão q.b.; hortelã q.b.

Faz-se um refogado com a cebola, o louro e a salsa picada. Picam-se as miudezas todas, põem-se a refogar e vai-se deitando um pouco de água. Quando estão refogadas, tem-se o sangue cozido, esfarela-se para dentro, tempera-se com os cominhos e a pimenta, deixa-se ferver e rectifica-se de sal e temperos. Está pronta. Leva sopas de pão e um ramo de hortelã.

Miolos de Borrego


2 mioleiras; 6 ovos; 1 cebola pequena; um pãozinho pequeno esfarelado; 4 rins de borrego; banha q.b.; sal q.b.

Cozem-se as mioleiras em água e sal, fritam-se os rins aos bocadinhos, pica-se a cebola que se frita em banha juntamente com os rins. Batem-se os ovos, pôe-se o miolo do pão, juntam-se a mioleira e os ovos aos rins e mexe-se tudo muito bem. Está pronto a servir.

Borrego Guisado com Ervilhas


1kg de borrego; 1kg de ervilhas frescas; 2 cebolas; 200 gr de banha; sal q.b.; colorau q.b.; pimenta moída q.b.; água q.b.

Refoga-se o borrego com os temperos todos e, quando esteja a meio da cozedura, junta-se-lhe as ervilhas. Quando as ervilhas estiverem cozidas, rectificam-se os temperos e está pronto.

Borrego Assado


1 Kg de Borrego; 2 cebolas; banha q.b.; 6 dentes de alho; 1 kg de batatas; 1 alface; 1 molho de hortelã; um molho de coentros; azeite e vinagre para temperar; louro q.b.; salsa q.b.; cravo de cabecinha q.b.; margarina q.b.; vinho branco.

Tempera-se o borrego com os temperos e o vinho branco, põe-se num tacho de barro para ir ao forno, juntam-se as batatas descascadas e põe-se tudo a assar no forno com a banha e a margarina. Guarnece-se com as batatas assadas e salada de alface cortada miudinha, com coentros e hortelã.

Mãozinhas de Borrego com Molho de Tomate


12 mãozinhas de borrego; 2 cebolas; 4 dentes de alho; louro q.b.; salsa q.b.; sal q.b.; pimenta moída q.b.; polpa de tomate q.b.; vinho branco q.b.

Cozem-se as mãozinhas de borrego. Depois de estarem cozidas, tiram-se os ossos. Faz-se um refogado com a cebola e os temperos todos. Quando a cebola está refogada, junta-se o tomate e deixa-se refogar muito bem.
Deita-se um pouco de vinho branco e caldo onde as mãozinhas foram cozidas. Juntam-se as mãozinhas e rectificam-se os temperos. Acompanha com arroz de manteiga ou triângulos de pão frito.

Cozido de Borrego com Grão, Feijão Verde e Abóbora


½ Kg de borrego; 250 gr de toucinho; 250 gr de chouriço; ½ litro de grão; ½ Kg de feijão verde; 1 abóbora pequena; 1 cebola; 2 dentes de alho; 1 colher de sopa de colorau; sal q.b.; banha q.b.; azeite.

Põem-se as carnes a cozer. Depois de estarem cozidas, coze-se o grão no caldo das carnes. Faz-se um refogado com os condimentos todos e põem-se o feijão verde e a abóbora a refogar. Quando estão refogados, junta-se-lhe o grão. Vê-se se estão bem temperados. Serve-se em prato de barro com as carnes por cima.



Queijo Fresco e Requeijão  


Queijadas


Para a massa: 400 gr de farinha; 130 gr de banha; sal q.b.; água morna q.b.
Amassa-se tudo junto e estende-se a massa com o rolo muito fininha. Forram-se formas untadas com manteiga e polvilhadas com farinha.
Para o recheio: 1,300 Kg de queijo fresco sem sal; 22 gemas de ovos; três ovos inteiros; 200 gr de manteiga; 1,200 Kg de açúcar; 130 gr de farinha; raspa de limão; 1 colher de chá de canela moída.

Põem-se os queijos dentro de um alguidar, juntam-se as gemas, os ovos, o açúcar e a raspa de limão, e bate-se tudo muito bem com a varinha mágica. Passa-se a farinha por um passador e junta-se à mesa. Por fim, junta-se a manteiga derretida. Enchem-se formas forradas com a massa e vão ao forno a cozer.



Bolo de Requeijão


600 gr de requeijão; 600 gr de açúcar; 12 ovos; 200 gr de farinha; raspa de um limão; 1 colher de chá de canela moída.

Batem-se as gemas com o açúcar, o requeijão, a casca ralada do limão, as claras em castelo e a farinha. Envolve-se tudo, unta-se uma forma com banha. Polvilha-se com farinha e deita-se a massa dentro. Vai a cozer em forno moderado.

Para completar a gastronomia do borrego aqui vão dois textos que publiquei no livro Terras de Grandes Barrigas, Onde Só Há Gente Gorda .
O primeiro intitulei-o O Cheiro da Esteva: Entravam na vila puxados pela arreata que o burcalheiro segurava com manha de guia. Carregadinhos de lenha de estevas, os burros do Ti Manel Pinheiro chegavam à rua de Montoito suando as estopinhas. A lenha amanhada em montão, crescendo do chão de calçada pela parede branca acima, esperava de noite o destino que a madrugada guardava – ser lume e calor para aquecer o forno do Tio João Sapinho.
Nas noites frescas de Abril a lenha servia-nos de esconderijo para as nossas fantasias de guerras e, enquanto esperava, o cheiro da resina entranhava-se-me no nariz ranhoso bebendo-o sem querer em inspirações profundas.
O bom cheiro da esteva queimada era um sinal nas manhãs de sábado quando o fumo subia nos ares anunciando o pão fresco da fornada. Minha avó, que tinha preparado a perna de borrego – muita banha, muita salsa, sal, colorau, batatas, cebolas, alhos e uma pinga de vinho branco -, mandava-me levar o tacho de barro tapado com um pano de cozinha, para que o forno ainda quente fizesse o milagre do assado. Por fora, a giz, levava o nome gravado – Filomena -, para que, à tarde, quando fosse buscá-lo não houvesse enganos. No caminho para casa, o tacho ainda quente, de vez em quando, às escondidas, assentava-o no chão, puxava do bolso umas sopas, molhava-as no caldo e lambia-me todo, porque na carne assadinha, apetitosa, não podia tocar com um dedo, senão a velha Flomenga dava logo por isso. Chegava do recado e ela ainda me dava o convite. Sabem lá vocês o encanto que esse tempo tinha!

O outro chamei-lhe O melhor manjar: Tempo de Páscoa e o borrego em minha casa era rei e senhor. Meu pai saía de manhã cedo no sábado de Aleluia e pelos cantos da vila só já se viam montes de peles sujas de sangue, que os peleiros compravam por tuta e meia a quem passava com elas para venda. Eu ia com ele, como quase sempre acontecia nestas situações de ver e viver a vida, como ele dizia.
Encaminhávamo-nos pela Rua do Jardim abaixo, passado o Largo dos Correios, e o mercado ficava ao fundo onde, nesse dia, se vendiam os borregos novos para as delícias do fim da Quaresma. Meu avô já lá estava no posto dele, curtindo os vapores da aguardente na baiuca  do Tio Marquês, e depois de meu pai acertar o preço do bicho com o vendedor, o velho Cera, pegava nele às costas, levava-o até minha casa e no quintal é que fazia a trasfega de o matar, esfolar, e partir com sabedoria de mestre – pernas e mãos para o assado, fígados para iscas, cabeças para assar no forno, costeletas para fazer em molho de bife, vísceras e sangue para fressura, tudo aproveitadinho como mandava a lei do pobre, rico por dias com a fartura destes bichos cuja carne era a mais saborosa e saudável que se comia na planície transtagana.
Falei em ensopado e tenho que descrever-vos este prato especial, o melhor manjar que minha avó e minha mãe faziam, porque nunca o comi em lado algum com elas o confeccionavam. Pois é assim. Já sabemos que as partes menos nobres do borrego é que vão para o tacho. Depois de feito o refogado de alhos, cebolas e louro, em azeite ou banha, a carne vai a cozer um pouco para tomar gosto, juntamente com algum sal, cravo de cabecinha e pimenta preta. Mete-se água em abundância e deixa-se ferver até a carne ficar meio cozida. Seguidamente, no meio da fervura, junta-se massa de tomate e no fim batatas aos quartos que cozem em lume brando.
Este ensopado comíamo-lo no Domingo de Páscoa ao almoço, com sopas de pão e salada de alface, naquela velha sala de jantar que tinha janela para a cozinha e por onde passavam os comeres e os beberes para o aconchego da família, que nesse dia era muita lá em casa. Domingo de Festa era um dia grande de alegria que se prolongava na tarde de Segunda-Feira, quando o Redondo inteiro ia para a Boa-Vista, para a Ribeira do Calado ou para a Piedade, para as famílias gozarem os prazeres da Primavera renascente, os sabores do assado de borrego, os delírios orgíacos do vinho tinto, quiçá os eflúvios do amor escondido em cama de ervas deitadas, atrás de arbustos viçosos, altaneiros.

Editado por:

ENCONTRO DE CONFRARIAS
Almoço cultural
“O Ciclo do Borrego”



8 de Abril de 2006
Moinho do Alcaide
Herdade das Mestras de Baixo
ÉVORA


Patrocínio:CÂMARA MUNICIPAL DE ÉVORA

                       

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